25.10.2010 - Maria Clara Bingemer, Teóloga e professora da PUC
Jornal do Brasil
Chamada desde sempre com os mais piedosos nomes: “Filha predileta da Igreja”, “Filha mais velha da Igreja”, a ligação da França com o catolicismo é fato histórico e comprovado ao longo de mais de 2 mil anos de cristianismo.
Dali surgiram grandes pensadores cristãos católicos, filósofos como Jacques Maritain, romancistas como Georges Bernanos, assim como eminentes teólogos, entre os quais Yves Congar e Henri de Lubac, são dos mais ilustres.
No entanto, ultimamente a tão católica França tornada berço da laicidade. Após a Revolução de 1789, entrou em um acelerado processo de secularização, o que tem lhe valido algumas interpelações e mesmo admoestações por parte das autoridades eclesiásticas. Assim foi em 1996, quando da visita do papa João Paulo II a Reims para comemorar o 1500º aniversário do batismo do rei Clóvis e mostrar a identidade cristã do país, por exemplo. Nesta ocasião, o pontífice lançou aos franceses a direta e cortante pergunta: “França, filha primogênita da Igreja, que fizeste de teu batismo?”.
O grito do papa não era sem fundamento. Segundo um artigo da revista Monde des religions, a França é o país europeu que conta com mais ateus e pessoas declaradas “sem religião”, sobretudo jovens, com formação universitária e aderentes a partidos de esquerda. O artigo enfatiza também que os que se declaram “sem religião” não deixam de ter algumas crenças, como a esperança na vida após a morte. Isso não impede que a prática religiosa seja parca na França, assim como em todo o resto da Europa, e que a adesão aos dogmas e à moral católica se encontre francamente esgarçada e tênue.
Parece, no entanto, que o dogma de fé que afirma que o batismo imprime “caráter” – ou seja, marca indelevelmente aquele que o recebe, não podendo ser administrado à mesma pessoa mais de uma vez na vida – está se fazendo surpreendentemente visível na laicizada França. Há alguns meses, o filme com maior bilheteria entre os produzidos no país é o belíssimo Des hommes et des dieux, de Xavier Beauvois, sobre a comunidade de monges trapistas assassinados em Thibirine, no Magreb, no ano de 1996.
Premiado em Cannes, o filme já alcançou uma bilheteria de 3 milhões, fato raríssimo no cinema europeu. Em todo o país, é assunto obrigatório de conversa e debate. Os principais periódicos franceses o têm como manchete e matéria de capa. E os jovens lotam as salas de exibição, fascinados pela história profunda e comovente daquela comunidade que, há quinze anos, discerniu e decidiu ficar em Thibirine correndo risco de vida para não abandonar o povo do lugar, na sua grande maioria muçulmano, com quem havia feito uma aliança de vida e morte.
Cinematograficamente, estamos diante de uma obra de arte. A direção impecável de Xavier Beauvois conduz o espectador suave e firmemente ao longo da trajetória espiritual daquela comunidade que, em meio a seu cotidiano feito de oração, trabalho manual e vida cenobítica, é chamada a tornar concreta a entrega radical da vida já realizada ao pronunciar os votos religiosos.
A fragilidade de homens que têm medo e querem viver, tentados a ir embora dali e salvar sensatamente suas vidas, vai sendo revertida pelo chamado de Deus e do povo argelino. Os frágeis homens então se agigantam, banhados pela luz da inspiração divina e pela paz da adesão à vontade daquele que é o Senhor de suas vidas.
Ao longo de todo o filme, destaca-se a figura do prior – em grande interpretação de Lambert Wilson – que, exercendo seu ministério de Abba-pai daquela comunidade, conversa com cada um, escuta, reza, ouve, sofre. A graça de estado que envolve sua fragilidade humana reforça em cada um de seus irmãos a coragem necessária para o sacrifício e o testemunho definitivos que virão.
Na vida real, esse grande homem, Christian de Chergé, escreveu seu testamento espiritual sentindo a morte que se aproximava e deixou um legado de fé e estatura espiritual ao qual hoje o filme de Xavier Beauvois faz justiça. Alavancado pelo filme, seu diário encontra-se esgotado em várias livrarias francesas.
A laicizada França ainda vibra sob o efeito de seu batismo. A repercussão do filme sobre os monges de Thibirine, juntamente com outros sintomas, como o grande número de jovens que procuram ao longo de todo o ano o mosteiro ecumênico de Taizé, dão testemunho disso.
Homens ou deuses? Homens, certamente, mas que permitem que a graça divina os configure segundo a grandeza do próprio Cristo. Que a memória ardente dessas testemunhas possa converter-nos. E encher nossa vida com um pouco mais de beleza e grandeza, sobretudo nestes tristes tempos em que desfila diuturna e incessantemente diante de nossos olhos o baixíssimo nível dos últimos estertores da campanha eleitoral para o segundo turno.
Fonte: http://www.comshalom.org/blog/carmadelio/
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