29.09.2010 - Resta ainda alguma coisa em que acreditar? Se a resposta for afirmativa, do que se trata? A essa e a semelhantes perguntas seguiram-se numerosas respostas. Ou melhor, talvez houve – e continua havendo – muitas. Mas é certo que apenas uma autoridade moral poderá oferecer respostas confiáveis, aceitáveis. O cardeal Carlo Maria Martini é uma dessas pessoas, estimado por quem tem fé, mas também por muitos laicos.
Ele respondeu no início dos anos 90 – era então arcebispo de Milão e tinha iniciado um diálogo fecundo com a sociedade civil – publicando o livro “C’è ancora qualcosa in cui credere” [Ainda há algo em que acreditar]. A obra agora é reproposta, em uma nova edição revista e atualizada, com o título “Qualcosa in cui credere” [Algo em que acreditar] (Ed. Piemme, 166 p.).
Como lembra o autor, as páginas nasceram “em circunstâncias diferentes”, mas em todas estava subentendido o “desejo de responder a uma grande inquietação do nosso tempo”. Retornam depois de inumeráveis estudos críticos, “depois de uma indigestão de espírito indagador”.
A primeira parte é dedicada aos Evangelhos e a utilizamos como exemplo principal, até porque recentes críticas à grande difusão contra a sua confiabilidade não levaram em conta esses aspectos. Os diversos ensaios que a compõem buscam responder a um quesito: são história ou lenda?
Sem utilizar uma linguagem científica – Martini é biblista de fama internacional –, mas utilizando uma terminologia compreensível a todos, ele lembra que, tempos atrás, as objeções contra o valor histórico dos Evangelhos eram movidas por quem estava fora da Igreja, muitas vezes pelos adversários do cristianismo, mas hoje ouvem-se vozes, “senão de dúvida, pelo menos de pergunta inquieta” dentro dela.
A moderna ciência histórica, os progressos da exegese bíblica e os atuais métodos de interpretação mostraram talvez que as posições defendidas por séculos não são mais sustentáveis? Martini responde com paciência, quase pegando o leitor pela mão. Destaca que os Evangelhos são uma obra “que passou por um longo processo de formação”, lembra que “não podem ser concebidos como uma biografia escrita teoricamente, como se Mateus, ou Marcos, perto dos anos 60-70 d.C., tenham se fechado no quarto e, percorrendo novamente com a memória os fatos de mais de 30 anos atrás, tenham escrito uma vida de Jesus”.
É uma concepção a ser invertida: não são as lembranças privadas dos evangelistas os elementos sobre os quais devemos nos basear, mas sim a sedimentação das pregações feitas naquele tempo sobre Jesus nas Igrejas. Enfim, as narrações evangélicas não são o simples registro daquilo que ocorreu, mas passaram por um processo de formação, com adaptações e mudanças. Por isso, pode-se falar de “pré-história oral”, já que – Irineu havia afirmado isto no século II – o Evangelho foi antes pregado e depois escrito pelos fiéis, que buscavam persuadir os outros.
Martini dedica cerca de 40 páginas às etapas da formação do texto. Antecipa que as aquisições da crítica do último meio século “não se opõem à confiança tradicional” no valor histórico, ou melhor, ajudam a compreendê-lo melhor, “formulando a argumentação de maneira mais ampla e comedida aos vários aspectos”.
Na penúltima parte do livro, depois de ter dedicado reflexões a 10 palavras-chaves da experiência cristã, Martini trata do “muro da angústia”, e um capítulo é intitulado “Come sono giunto a credere” [Como cheguei a crer]. Sem entrar na sua própria autobiografia, ele descreve a história do menino que foi, que conheceu Cristo muito cedo e ficou fascinado com ele. Um jovem que buscava livros, que desejava “descobrir a verdade até o fundo” e “a solidez” do que lhe era ensinado. Ei-lo inclinado nos textos de origens cristãs, aprendendo as línguas em que os livros da Bíblia foram escritos, ocupando-se de arqueologia, culturas, história e de tudo o que lhe permitia se aproximar das fontes.
“Nunca me contentei apenas com as interpretações positivas”, confessa. Ele também enfrentou, portanto, racionalistas, ateus, redutivistas. São anos de leituras, confrontos, ansiedades, tensões. Mas aquele jovem compreendeu que não é possível evitar a figura de Cristo, nem negar a fé nas fontes antigas sobre ele “sem se desmentir, sem entrar em algumas contradições com o método de pesquisa”. Um dia concluiu que “a história de Jesus é, no seu conjunto, totalmente inatacável”.
Haveria muitas coisas a acrescentar na margem dessas páginas. Diremos apenas que a resposta de Carlo Maria Martini é um convite a crer sem medo no Cristo. Aquele “Algo” que mudou a história.
Fonte: Jornal Corriere della Sera
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