Adicionado ao www.rainhamaria.com.br em 14.07.2010 -
Gosto demais de ficar em casa, no meu canto feito ninho, no meu ninho feito canto, ouvindo as risadas lá em cima da minha gente em rebuliço. Gustavo fazendo alguma bagunça, Luiza rindo de qualquer coisa, Aline chamando Raissa, que só fica estudando. E mãe, quieta, arrumando pela décima vez algum armário e pondo em algum esconderijo minhas meias prediletas. Mãe é Rose, a mãe de meus quatro filhos, a mãe da minha paternidade, a mãe da minha casa feita mundo e do meu mundo feito lar.
Gosto de saber que eles estão lá, tão perto, e sob a mira dos meus olhos e do som dos meus passos. De vez em quando, subo correndo as escadas para apanhar qualquer um no ‘abraço de leão’ e todos fogem espavoridos, risos à solta do leão à solta. Gosto demais de abraçar e apertar meus filhos não contra o peito, mas junto ao coração. Deus sabe quanto vai me custar um dia saber o que antecipo agora como saudade.
Gosto da minha casa, não por ser grande e esparramada, mas por ser acolhedora e espaçosa. Gosto de ambientes definidos, organizados, com coisas funcionais e despojados de luxo. Gosto principalmente desse riso que ecoa pelos quartos e salas, sobem pelas paredes, adentram pela cozinha e esvoaçam pelo escritório, sem se perderem em labirintos ou corredores. Gosto da minha casa sem corredores.
Gosto sempre de voltar, da oração muda ao portão, da chegada feliz, dos abraços de afeto. Aí faz sentido ter partido, ter feito as coisas que se têm de fazer, fazer a roda da vida fincar chãos que nunca ficam para trás. Gosto sempre de olhar mãe nos olhos, gosto sempre de me ver nos olhos dos meus filhos; nunca seremos sombras nem penumbras quando se colhe os frutos das verdades.
Gosto das missas de domingo. Domingo sem missa não é domingo, embora muitas vezes faço domingos nos sábados à noite (deve ser pelo receio de perder missa...). E nos dividimos que a família é grande e no carro não cabe a ‘tchurma’ toda. Ás vezes, vamos a pé todo mundo junto e a bagunça de casa vai se arrastando até a porta da igreja. Até a porta. E da porta da igreja para casa tem o bis. Acho bonito e um consolo imenso ver meus filhos comungando comigo e mãe, mas isto guardo comigo.
Gosto demais de andar pelas ruas e becos da minha Ouro Preto com tanta história para contar. Admirar a arte dos portugueses na construção do casario, das janelas e sacadas, na arquitetura barroca das igrejas, nos muros de pedras secas, no calçamento de paralelepípedos, nas ruas íngremes, nas casas geminadas, nos prédios e monumentos singulares. O passado mora em cada esquina, gente de outrora certamente se enfurna num canto qualquer do Beco da Ferraria.
Gosto demais de ver ao longe a silhueta empertigada do Itacolomi, como sentinela onipresente dessa terra, testemunha fiel de tantos eventos e registros históricos, recortando e se aprumando em meio a serra de quartzitos, como que debruçada sobre a cidade. Talvez não goste tanto de ver como o casario apequenado vai subindo pelas encostas dos platôs, desfigurando a paisagem e quebrando a sintonia singular que molda passado e presente numa tela única e de beleza invulgar.
Gosto demais de poesia e ser poeta; acalentar em versos a beleza de um sentimento, de uma personagem, de uma história, de uma metáfora. Com rimas ou sem rimas, no aconchego dos sonetos ou na espiral aberta dos textos livres, desde que brilhe a luz da beleza ímpar de gerar emoções e reflexões no leitor interessado. Fazer poesia é fazer vibrar a comunicação pela arte das palavras alinhadas ou em suspeito desalinho para produzir encanto ou, se mais possível for, encantamento.
Gosto demais de ser professor, das minhas aulas preparadas, do meu exercício cotidiano de formar engenheiros civis a cada semestre, a cada ano, e lá se vão quase 30 anos nisso... Gosto das minhas provas longas, ‘puxadas’, das questões nunca repetidas (não adianta estudar somente pelas ‘finas’, viu moçada?). E é quase certo que este meu ‘gosto demais’ não seja compartilhado pelo conjunto da orquestra ...rsrsrs
Gosto destas noites frias de junho, mesmo quando Gustavo se enrosca no meio da gente, com a desculpa de querer dormir ouvindo a mãe contar histórias. Gosto das manhãs de sol, da chuva fina que cai dias e dias sobre o casario colonial, do nevoeiro que faz o céu ficar tão baixo, das tardes luminosas do verão... Mas esta árvore do vizinho que despeja centenas de folhinhas minúsculas na área aqui de casa nesta época, eu não gosto não. Atrapalha até o ‘controle’ e o ‘gol-a-gol’, nas minhas acirradas disputas futebolísticas com Gustavo, quase sempre resultando no mesmo e velho perdedor...
Gosto demais da comida mineira, no tutu com torresmo, no feijão tropeiro, da feijoada, do frango com quiabo, no pão de queijo, no cuzcuz e no arroz doce, no doce de leite, na goiabada com queijo... Gosto de almoçar e de jantar todos os dias, do café-leite-pão das manhãs e gosto demais da comida de mãe, mesmo que seja o famoso ‘mexido’ das noites mais preguiçosas de domingo,
Gosto da música calma e tranqüila, orquestrada ou sinfônica até a mais singela, e nisso padeço nas viagens longas de carro, quando a ‘tchurma’ do barulho se impõe para ouvir os “grandes sucessos do momento” e não “as músicas do século passado”. E os trinados automotivos se revezam, numa disputa acirrada entre uns e outros, com franca dispersão de interesses para os eventuais derrotados de momento.
Gosto muito de futebol e não perco um jogo do Santos, seja um clássico ou contra o time do Tabajaras. Raissa e Gustavo me acompanham em todas as batalhas; Aline e Luiza puxaram a mãe e são cruzeirenses. Fazer o quê, nem tudo é perfeito... Já fui um bom ponta direita, até que um zagueiro chamado ‘Índio” me rompeu o cruzado anterior do joelho esquerdo. Meus cálculos renais são famosos e perturbam a trupe inteira; com eles convivo muito bem e nem um ai meu tem um ai de revolta.
Gosto de rezar sempre, sempre pela manhã,sempre à noite, sempre às primeiras sextas-feiras. Rezamos juntos o terço: eu sou o puxador, cada um dos outros reza um mistério, começando pelo caçula. Cada um já sabe exatamente quando rezar e como rezar, quase sempre na sala, diante da Imagem de Nossa Senhora do Rosário e de Jesus de Infinita Misericórdia. Nestas horas,qualquer homem sabe a pequenez de que é feito e se infunde de esperança e confiança de ser julgado pela graça do Pai e não pelo conhecimento dos homens. Eu preciso disso muito mais que a maioria dos homens.
Gosto de ler e escrever muito. Gosto de pensar sempre em meu pai. Gosto de usar o escapulário e roupa folgada, embora seja magro. Gosto de vinho e de queijo e de filé com fritas. Gosto de calças escuras e camisas claras e quase nunca o inverso. Gosto de lavar o carro e consertar as coisas de casa. Gosto muito também de pipoca, mesmo de microondas. Muitas vezes sou rude e muito duro com as pessoas, talvez isso seja quase sempre. Não é bonito, eu sei, mas o que me consola é que não me falta a caridade.
Gosto muito de ser um homem comum, de ser um homem cristão. E gosto muito, muitíssimo, de viver na certeza de que, um dia, serei, junto com mãe e meus filhos, com Jesus e Nossa Senhora, um homem comum no céu.
Romero César Gomes é professor universitário e mora em Ouro Preto/MG [email protected] (este texto é uma homenagem à Marisa Bueloni).