19.01.2010 - Discute-se se o terremoto do Haiti foi um castigo de Deus. Dividem-se os opinantes: não, Deus não castiga; sim, é por causa do vodoo praticado pelo povo. Obviamente, há outras opiniões mais sensatas; estas duas, no entanto, são simplórias demais e, na minha opinião, devem ser desconsideradas.
Quanto à primeira, é óbvio que Deus castiga. As Escrituras estão repletas de exemplos: do Dilúvio passando pela destruição de Sodoma e Gomorra, até os egípcios morrendo afogados no Mar Vermelho e outros episódios menos conhecidos. Não é possível ao católico simplesmente dizer “Deus não castiga”, porque isso é contrário ao que se sabe ter ocorrido ao longo da história da Salvação.
Obviamente, o castigo de Deus não é um mal absoluto, porque Deus não pode querer o mal em si. Santo Tomás de Aquino explica isso na Summa, II-IIae, q. 19, a.1 (tradução livre):
Em verdade, de Deus pode-nos sobrevir o mal da pena [castigo], que não é mal absoluto, mas sim mal relativo e bem absoluto. Efetivamente, dado que o bem estabelece ordem para um fim e o mal consiste na privação desta ordem, é mal absoluto aquilo que exclui totalmente a ordem ao fim último, que é o mal da culpa. O mal da pena, ao contrário, é certamente um mal, enquanto nos priva de um bem particular; mas em absoluto é bem, porque está ordenado ao fim último.
Deus, portanto, castiga sim, e o castigo de Deus é sempre um bem absoluto, porque está ordenado ao fim último do homem, que é Ele próprio. Como, por exemplo, um pai que castiga o filho para o educar.
Pode-se objetar que não pertence ao pátrio poder espancar um filho até a morte, e que bem pouco aprendizado alguém pode obter de uma experiência se não sobreviver a ela. Esta visão, no entanto, é puramente materialista e não serve para impugnar a visão católica segundo a qual os castigos divinos – quaisquer que sejam eles – estão ordenados ao fim último do ser humano. Ela – a visão materialista – parte de dois pressupostos que não são aceitos pelos católicos: o primeiro, que a vida é um bem absoluto e, o segundo, que o castigo deve servir sempre e somente para os indivíduos castigados. Nós, católicos, sabemos que o fim último ao qual deve almejar o ser humano não é a preservação da própria vida física, e sim a salvação da sua alma. Ninguém pode dizer o que se passa no íntimo de uma pessoa vitimada por uma tragédia nos seus instantes derradeiros e, portanto, não se pode afirmar que o mal relativo não tenha redundado em um bem absoluto – ao contrário, é exatamente por isso que rezamos. Igualmente, o mal sofrido pela parte pode, ainda que não redunde em bem para ela, servir ao todo: como a amputação de um membro gangrenado que, embora não cause bem ao membro amputado, provoca bem ao corpo, ou como aquela história do rei que perdeu um dedo numa caçada. Portanto, uma catástrofe qualquer não pode, a priori, ser excluída como castigo divino por conta de objeções naturalistas como as que são ordinariamente apresentadas.
Quanto à segunda opinião – a de que o terremoto foi, sim, castigo de Deus por conta do vodoo praticado pelo povo -, ela também não pode ser pressuposta assim, sem mais nem menos. Vale salientar que 80% da população do Haiti é católica, e o catolicismo é inclusive a religião oficial do Estado. Obviamente, Deus pode ter castigado a infidelidade de um povo que, honrando-o com os lábios – com a Constituição… -, não Lhe presta louvor verdadeiro com a própria vida. Sim, Deus pode ter feito isso, mas Deus pode igualmente não ter feito isso – ou não pode? Há incontáveis exemplos de ímpios que parecem ser imunes a tragédias, bem como de pessoas inocentes que são vitimadas por desgraças sem que mereçam. Não dá, também, para dizer a priori que Deus resolveu castigar o Haiti por conta da feitiçaria praticada pelo povo católico. Deus não “funciona” com o determinismo de causa-efeito de uma lei física.
Então, afinal, o que dá para dizer? Na verdade, não dá para dizer rigorosamente nada, porque ninguém conhece os desígnios do Altíssimo. Que os terremotos são causados pelos movimentos das placas tectônicas é simplesmente um detalhe técnico – aliás, evidente e incontestável – que não vem ao caso nesta discussão. Os fenômenos naturais, afinal de contas, estão sujeitos ao Autor das leis da natureza.
O que dá para saber com certeza é que Deus não permitiria o mal se, dele, não pudesse tirar um bem ainda maior – como diz Santo Agostinho. E, se um terremoto que deixou milhares e milhares de mortos, feridos e desabrigados é obviamente um mal, importa dar sentido ao sofrimento. Não faz diferença (e, aliás, nem é humanamente possível) saber com certeza se foi castigo divino ou fatalidade permitida pelo Onipotente. O que importa é unir as próprias dores àquelas sofridas pelo Homem das Dores. Como falou o Papa João Paulo II na Salvifici Doloris:
Todo o homem tem uma sua participação na Redenção. E cada um dos homens é também chamado a participar naquele sofrimento, por meio do qual se realizou a Redenção; é chamado a participar naquele sofrimento, por meio do qual foi redimido também todo o sofrimento humano. Realizando a Redenção mediante o sofrimento, Cristo elevou ao mesmo tempo o sofrimento humano ao nível de Redenção. Por isso, todos os homens, com o seu sofrimento, se podem tornar também participantes do sofrimento redentor de Cristo.
[SD, 19]
Que os sofrimentos humanos – em particular estes de memória tão recente – não sejam inúteis, é o que pedimos à Virgem Santíssima, Mater Dolorosa, Nossa Senhora das Dores, Aquela que tão perfeitamente soube unir os próprios sofrimentos aos de Seu Divino Filho.
Fonte: http://www.deuslovult.org