24.12.2009 -
Natal do Senhor
Já muitas vezes, caríssimos, ouvistes falar e fostes instruídos a respeito do mistério da solenidade de hoje; porém, assim como a luz visível enche sempre de prazer os olhos sadios, também aos corações retos não cessa de causar regozijo a natividade do Senhor.
Jamais devemos deixá-la transcorrer em silêncio, embora não possamos condignamente explaná-la, pois aquela palavra: “a sua geração, quem a poderá explicar?” (Jo 53, 8 ) se refere certamente não só ao mistério pelo qual o Filho de Deus é co-eterno com o Pai, mas ainda a este nascimento em que “o Verbo se fez carne” (Jo 1, 14).
O Filho de Deus, que é Deus como seu Pai, que recebe do Pai sua mesma natureza, Criador e Senhor de tudo, que está presente em toda parte e transcende o universo inteiro, na seqüência dos tempos que, de sua providência dependem, escolheu para si este dia, a fim de, em prol da salvação do mundo, nele nascer da bem-aventurada Virgem Maria, conservando intacto o pudor de sua mãe. A virgindade de Maria não foi violada no parto, como não fora maculada na conceição, “a fim de que se cumprisse – diz o evangelista – o que foi pronunciado pelo Senhor, através do profeta Isaías: Eis que uma virgem conceberá no seu seio e dará à luz um filho, ao qual chamarão Emanuel, que quer dizer Deus conosco” (Mt 1, 23).
O admirável parto da sagrada Virgem trouxe à luz uma pessoa que, em sua unicidade, era verdadeiramente humana e verdadeiramente divina, já que as duas naturezas não conservaram suas propriedades de modo tal que se pudessem distinguir como duas pessoas: não foi apenas ao modo de um Habitador em seu habitáculo que o Criador assumiu a sua criatura, mas, ao contrário, uma natureza como que se adicionou à outra. Embora duas naturezas, uma a assumente e outra assumida, é tal a unidade que formam, que um único e mesmo Filho poderá dizer-se, enquanto verdadeiro homem, menor que o Pai (cf. Jo 14, 38) e enquanto verdadeiro Deus, igual ao Pai (cf. Jo 10, 30).
Uma unidade dessas, caríssimos, entre Criador e criatura, o olhar cego dos arianos não pôde entender, os quais, não crendo que o Unigênito de Deus possua a mesma glória e substância do Pai, afirmaram ser menor a divindade do Filho, argumentando com as palavras (evangélicas) que dizem respeito à forma de servo (Fl 2, 6).
Ora, o próprio Filho de Deus, para mostrar como essa condição de servo nele existente não pertence a uma pessoa estranha e distinta, com ela mesma nos diz: “eu e o Pai somos uma só coisa” (Jo 10, 30).
Na natureza de servo, portanto, que ele, na plenitude dos tempos, assumiu em vista da nossa redenção, é menor do que o Pai; mas na natureza de Deus, na qual existia desde antes dos tempos, é igual ao Pai. Em sua humildade humana, foi feito da mulher, foi feito sob a Lei (cf. Gl 4, 4), continuando a ser Deus, em sua majestade divina, o Verbo divino, por quem foram feitas todas as coisas (cf. Jo 1, 3). Portanto, aquele que, em sua natureza de Deus, fez o homem, revestiu uma forma de servo, fazendo-se homem; é o mesmo o que é Deus na majestade desse revestir-se e homem na humildade da forma revestida. Cada uma das naturezas conserva integralmente suas propriedades: nem a de Deus modifica a de servo, nem a de servo diminui a de Deus. O mistério, pois, da força unida à fraqueza, permite que o Filho, em sua natureza humana, se diga menor do que o Pai, embora em sua natureza divina lhe seja igual, pois a divindade da Trindade do Pai, do Filho e do Espírito Santo é uma só. Na Trindade o eterno nada tem de temporal, nem existe dissemelhança na divina natureza: lá a vontade não difere, a substância é a mesma, a potência igual, e não são três Deuses, unidade verdadeira e indissociável é essa, onde não pode existir diversidade.
Nasceu pois numa natureza perfeita e verdadeira de homem o verdadeiro Deus, todo no que é seu e todo no que é nosso. “Nosso” aqui dizemos que o Criador criou em nós no início, e depois assumiu para restaurar. O que, porém, o sedutor (o demônio) introduziu e o homem, ludibriado, aceitou, isso não teve nem vestígio no Salvador, pois comungando com nossas fraquezas não participou dos nossos delitos. Elevou o humano sem diminuir o divino, dado que a exinanição em que o Invisível se nos mostrou visível foi descida de compaixão, não deficiência de poder.
Assim, para sermos novamente chamados dos grilhões originais e dos erros mundanos à eterna bem-aventurança, aquele mesmo a quem não podíamos subir desceu até nós. Se, realmente, muitos eram os que amavam a verdade, a astúcia do demônio iludia-os na incerteza de suas opiniões, e sua ignorância, ornada com o falso nome de ciência, arrastava-os a sentenças as mais diversas e opostas. A doutrina da antiga Lei não era bastante para afastar essa ilusão que mantinha as inteligências no cativeiro do soberbo demônio. Nem tampouco as exortações dos profetas lograriam realizar a restauração de nossa natureza. Era necessário que se acrescentasse às instituições morais uma verdadeira redenção, necessário que uma natureza corrompida desde os primórdios renascesse em novo início. Devia ser oferecida pelos pecadores uma hóstia ao mesmo tempo participante de nossa estirpe e isenta de nossas máculas, a fim de que o plano divino de remir o pecado do mundo por meio da natividade e da paixão de Jesus Cristo atingisse as gerações de todos os tempos e, longe de nos perturbar, antes nos confortasse a variação dos mistérios no decurso dos tempos, desde que a fé, na qual hoje vivemos, não variou nas diversas épocas.
Cessem, por isso, as queixas dos que impiamente murmuram contra a divina providência e censuram o retardo da natividade do Senhor, como se não tivesse sido concedido aos tempos antigos o que se realizou na última idade do mundo. A Encarnação do Verbo podia conceder, já antes de se realizar, os mesmos benefícios que outorga aos homens, depois de realizada; o ministério da salvação humana nunca deixou de se operar. O que os apóstolos pregaram, os profetas prenunciaram; não foi cumprido tardiamente aquilo a que sempre se prestou fé. A sabedoria, porém, e a benignidade de Deus, sem essa demora da obra salutífera, nos fez mais capazes de nossa vocação, pois o que fora prenunciado por tantos sinais, tantas vezes e tantos mistérios, poderíamos reconhecer sem ambigüidade nestes dias do Evangelho. A natividade, mais sublime do que todos os milagres e do que todo o entendimento, geraria em nós uma fé tanto mais firme quanto mais antiga e amiudada tivesse sido antes sua pregação. Não foi, pois, por deliberação nova ou por comiseração tardia que Deus remediou a situação do homem, mas, desde a Criação do mundo instituíra uma e mesma causa de salvação, para todos. A graça de Deus, que justifica os santos, foi aumentada com o nascimento de Cristo, não foi simplesmente principiada. E esse mistério da compaixão, esse mistério que hoje já enche o mundo, fora tão potente em seus sinais prefigurativos que todos os que nele creram, quando prometido, não conseguiram menos do que os que o conheceram realizado.
São assim, caríssimos, tão grandes os testemunhos da bondade divina para conosco que, para nos chamar à vida eterna, não apenas nos ministrou as figuras, como aos antigos, mas a própria Verdade nos apareceu, visível e corpórea. Não seja, portanto, com alegria profana ou carnal que celebremos o dia da natividade do Senhor. Celebrá-lo-emos dignamente se nos lembrarmos, cada um de nós, de que Corpo somos membros e a que Cabeça estamos unidos, cuidando que não se venha a inserir no sagrado edifício uma peça discordante.
Considerai atentamente, caríssimos, sob a luz do Espírito Santo, quem nos recebeu consigo e quem recebemos conosco: sim, como o Senhor se tornou carne nossa, nascendo, também nós nos tornamos seu Corpo, renascendo. Somos membros de Cristo e templos do Espírito Santo e por isto o Apóstolo diz: “Glorificai e trazei a Deus no vosso corpo” (1 Cor 6, 20). Apresentando-nos o exemplo de sua humildade e mansidão, o Senhor comunica-nos aquela mesma força com que nos remiu, conforme prometeu: “Vinde a mim, vós todos, que trabalhais e estais sobrecarregados, e eu vos reconfortarei. Tomai o meu jugo sobre vós e aprendei de mim que sou manso e humilde de coração, e encontrareis repouso para vossas almas” (Mt 11, 28s).
Tomemos, portanto, o jugo, em nada pesado e em nada áspero, da Verdade que nos guia e imitemos na humildade aquele a cuja glória queremos ser configurados. Que nos auxilie e nos conduza às suas promessas quem em sua grande misericórdia é poderoso para apagar nossos pecados e completar seus dons em nós, Jesus Cristo, nosso Senhor, que vive e reina pelos séculos dos séculos. Assim seja.
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[GOMES, Cirilo Folch, OSB. Antologia dos Santos Padres. Coleção “Patrologia”. Ed. Paulinas, São Paulo, 1985.]
Fonte: Ecclesia