24.10.2009 - Reportagem da revista ISTOË, ediç:ao de outubro 2009.
O País todo assistiu estarrecido aos vídeos de quatro câmeras de segurança de estabelecimentos comerciais de uma rua do Rio de Janeiro nos quais se veem dois bandidos assaltando e matando um homem e, ato contínuo, dois PMs roubando os ladrões - que, ao final, seguem calmamente e em liberdade.
A vítima é o coordenador do AfroReggae, Evandro João Silva, 42 anos, e a tragédia aconteceu na madrugada do domingo 18, na rua do Carmo, no centro. Se isso não fosse suficiente para atingir em cheio a alma de qualquer cidadão, duas novas informações, dadas posteriormente, completariam o trabalho.
A primeira: Silva talvez pudesse ter sido salvo, já que ainda se movimentava quando a viatura policial passou e não prestou socorro. A segunda: um dos policiais é capitão e sua função era justamente fiscalizar os PMs que trabalhavam naquela região naquela madrugada. A reação do governo e do comando da PM foi firme e imediata. Os policiais envolvidos são o capitão Dennys Leonard Nogueira Bizarro e o cabo Marcos de Oliveira Salles, e ambos já estão presos administrativamente.
Os assassinos continuavam foragidos até o fechamento desta edição, na sexta-feira 23. O cadáver de Silva foi sepultado no cemitério do Caju. Agora, são só lágrimas: a família dele chora, os integrantes do AfroReggae choram, e até outros bandidos em presídios manifestaram tristeza e comoção. Silva desenvolvia o projeto Rebelião Cultural para os carcerários em Bangu II, III e IV.
A sociedade, de modo geral, também está de luto e se indigna. A reação do governador Sérgio Cabral não foi diferente de qualquer outro cidadão. "Vagabundos! Safados!" foram alguns dos termos usados por ele para extravasar sua revolta. Partiu do governador a decisão de demitir o relações-públicas da Polícia Militar do Rio, o major Oderlei Santos, que classificou o episódio de mero "desvio de conduta". Cabral disse que "ele se comportou como um advogado de defesa de policiais" e reagiu com veemência: "Isso eu não admito.
Há registros contundentes de um mau comportamento de um capitão e policiais militares, mas temos a grande maioria combatendo o crime, dando as suas vidas." Sobre os PMs criminosos, o governador disse o que todos esperavam ouvir: "Têm que ser banidos da corporação e responder criminalmente pelo que fizeram."
PAPEL TROCADO Cabo Marcos Salles é detido após imagens irem ao ar
O horror gerado pelo fato registrado nas câmeras, segundo a psiquiatra Vera Lemgruber, provoca apatia, sensação de desânimo, inutilidade, desamparo, incapacidade de reação - os sentimentos são individuais, mas o fenômeno é coletivo.
"Essas sensações podem levar à depressão e se alastrar para outras áreas da vida, como a profissional e a pessoal", diz ela. A longo prazo, o efeito catastrófico se pulveriza na "certeza" de que "nada adianta" e de que ninguém presta.
Ação e habilidade para lidar com o caso é o que pede o coordenador-executivo do grupo AfroReggae, José Júnior. À ISTOÉ, ele disse que tudo o que vimos até agora pode ser apenas a ponta do iceberg. "Um capitão não iria se sujar por uma jaqueta e um par de tênis. Quando os policiais achacaram os bandidos, só um criminoso é liberado.
Cadê o outro? Isso deu a entender que os PMs soltaram um deles para arrumar dinheiro. Seria uma espécie de pagamento de resgate", raciocina ele. O chefe do Ministério Público do Rio, procurador-geral de Justiça Cláudio Lopes, pede pena de latrocínio para todos os envolvidos, tanto os policiais militares quanto os bandidos. "Merecem uma condenação por latrocínio, como dispõe o Código Penal." O presidente do Tribunal de Justiça do Rio, desembargador Luiz Zveiter, fala sobre a possibilidade de uma parceria imoral entre os policiais e os bandidos.
"Parece que foi coisa de encomenda. A impressão é de que os policiais sabiam que o fato ia acontecer e foram coniventes." A conivência, para a presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB/RJ, Margarida Pressburger, é um conceito que tem de ser repensado por todos.
"A sociedade é conivente quando dá um dinheirinho para o policial que a flagrou num delito de trânsito, por exemplo, para escapar de uma multa. Conheço gente que faz isso", diz. Margarida lembra que não se pode culpar todos os policiais pelos atos criminosos de alguns.
"Recebo denúncias de PMs que invadem barracos em favela para roubar e recebo, também, elogios para outros policiais que protegem esses mesmos cidadãos." Em depoimento na delegacia, o capitão Bizarro negou a omissão de socorro. Cínico, alegou que não percebeu o corpo da vítima estirado na calçada. Quem viu as imagens dezenas de vezes, como o líder do Afro- Reggae, José Junior, não aceita a tese.
"A câmera mostrou os bandidos fugindo tranquilamente com as coisas do Evandro e 17 segundos depois chegou a viatura. Evandro foi baleado e ficou caído numa calçada pequena. Ali é apertadinho não tinha como os PMs não vê-lo. Ele estava vivo ainda, se mexendo", disse José Junior. Para o antropólogo Gilberto Velho, o horror exibido pelas câmeras não é novo - "vem de décadas" -, a novidade é a prova do crime gravada.
E aponta o que defende como solução: "Reforma da polícia, ouvidoria externa e independente, acabar com a fusão entre polícias civil e militar, melhorar os salários e oferecer treinamento regular." É uma pena que nada, entretanto, poderá aliviar a dor de Inácio João da Silva, 75 anos, pai de Silva.
"Se eu estivesse cara a cara com o chefão da polícia, queria pedir para ele pôr os culpados na cadeia, para eles mofarem lá. Não em prisão administrativa. Policial que faz isso é mais bandido do que os bandidos. Disseram que não viram o Evandro, mas a jaqueta e o tênis eles enxergaram bem. Agora, só nos resta pedir justiça", diz. (fim)
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Lembrando...
A perda de privacidade: Tecnologia transformará nossas vidas em Big Brother
03.12.2008 - Harrison Brown, 18, um calouro de matemática no MIT, não precisou de cálculos complexos para saber que gostava do negócio: um smartphone em troca da permissão de ter cada movimento rastreado por pesquisadores.
Agora, quando ele liga para um colega, os pesquisadores sabem. Quando ele manda um e-mail ou uma mensagem de texto, eles também sabem. Quando escuta música, eles sabem qual. Sempre que carregar seu smartphone com Windows Mobile, eles saberão onde ele está e com quem.
Brown e cerca de 100 outros estudantes vivendo no dormitório Random Hall do MIT concordaram em trocar sua privacidade por smartphones que geram rastros digitais transmitidos a um computador central. Além das ações individuais, os aparelhos capturam uma imagem móvel da rede social do dormitório.
Os dados dos estudantes são apenas uma gota no grande oceano de informação digital sendo gravada por uma variedade de sensores, telefones, aparelhos de GPS ou crachás de escritório, que capturam nossos movimentos e interações. Associados a informações conseguidas de outras fontes, como navegação pela Internet e cartões de crédito, os dados são a base para um novo campo, chamado inteligência coletiva.
Impulsionada pelas novas tecnologias e pela sólida incursão da Internet em cada espaço da vida cotidiana, a inteligência coletiva oferece recursos poderosos, que podem tanto melhorar a eficiência de anúncios quanto possibilitar novas formas de organização de grupos comunitários.
Mas mesmo seus defensores reconhecem que, se mal utilizados, os recursos da inteligência coletiva podem criar um futuro orwelliano em proporções que o Grande Irmão nem sonharia.
A inteligência coletiva pode dar às seguradoras, por exemplo, dados de comportamento para identificar secretamente as pessoas que sofrem de uma doença particular e negar cobertura a elas. De forma parecida, o governo ou oficiais da lei poderiam identificar os integrantes de um grupo de protesto rastreando as redes sociais reveladas pela nova tecnologia. "Existem tantos usos para essa tecnologia - do marketing à guerra - que não consigo deixar de pensar que nossas vidas estarão impregnadas por ela em poucos anos," diz Steve Steinberg, cientista da computação que trabalha para uma firma de investimentos em Nova York.
Em uma postagem na Internet muito acessada, ele argumentou que havia grande probabilidade de usos inapropriados: "é uma das tendências tecnológicas mais significativas dos últimos anos; pode ser também uma das mais perniciosas."
Nos últimos 50 anos, os americanos têm se preocupado com a privacidade individual na era do computador. Mas as novas tecnologias se tornaram tão poderosas que o problema extrapolou a questão da proteção da privacidade individual. Agora, com a Internet, sensores sem fio e a capacidade de analisar avalanches de dados, o perfil de uma pessoa pode ser estabelecido sem qualquer monitoramento direto.
"Já disseram que, com as novas tecnologias, há uma expectativa menor de privacidade," disse Marc Rotenberg, diretor-executivo do Electronic Privacy Information Center (Centro de Informações sobre Privacidade Eletrônica), um grupo de direitos de privacidade de Washington. "Mas o oposto também pode ser verdade. As novas técnicas podem exigir que expandamos nosso entendimento de privacidade, tratando do impacto da coleta de dados em grupos de pessoas, não apenas indivíduos."
Brown é um que não se preocupa com a perda de privacidade. Os pesquisadores do MIT o convenceram de que haviam feito grandes esforços para proteger qualquer informação gerada pelo experimento que pudesse revelar sua identidade.
Além disso, ele diz, "da forma que vejo, todos temos perfis no Facebook, e-mails, sites e blogs."
"Isso é uma gota no oceano em termos de privacidade," acrescenta.
O Google, e seu vasto complexo de mais de um milhão de servidores de pesquisa pelo mundo, continua sendo o melhor exemplo do poder e potencial de enriquecimento da inteligência coletiva. Seu fabuloso algoritmo PageRank, que foi originalmente o responsável pela qualidade dos resultados de busca do Google, obtinha sua precisão da sabedoria inerente dos bilhões de links individuais que as pessoas criavam.
A companhia introduziu um serviço de reconhecimento de voz no começo de novembro, inicialmente para o iPhone da Apple, que deve sua precisão em grande parte a um modelo estatístico desenvolvido a partir dos vários trilhões de termos de pesquisa utilizados por seus usuários na última década. No futuro, o Google aproveitará as perguntas faladas para antecipar de forma ainda mais precisa as questões que seus usuários vão fazer.
E, há algumas semanas, o Google disponibilizou um serviço de antecipação de tendências de gripe, baseado no número de termos de pesquisa dos sintomas da doença.
O sucesso do Google, junto à rápida expansão da Internet e sensores sem fio - como rastreadores de posição em telefones celulares e aparelhos de GPS em carros -, desencadeou uma corrida para faturar com as tecnologias de inteligência coletiva.
Em 2006, a Sense Networks, de Nova York, provou que havia muita informação útil escondida em um arquivo digital de dados de GPS, gerados por dezenas de milhares de corridas de táxi em São Francisco. Podia-se ver, por exemplo, que as pessoas que trabalhavam no distrito financeiro da cidade tendiam a sair mais cedo para trabalhar quando o mercado estava em alta, mas mais tarde quando em baixa.
Também foi observado que as pessoas de classe média - determinadas por seu código postal - tendiam a chamar táxis com mais freqüência pouco antes de maus tempos nos negócios.
A organização desenvolveu dois aplicativos, um para consumidores utilizarem em smartphones como BlackBerry e iPhone, outro para empresas interessadas em antecipar tendências sociais e comportamento financeiro. O aplicativo para consumidores, o Citysense, identifica os pontos quentes de entretenimento em uma cidade. Ele relaciona informações da Yelp e do Google sobre casas noturnas e de shows com os dados gerados por rastreadores de posição de usuários anônimos de celular.
O segundo aplicativo, Macrosense, pretende fornecer um vislumbre empresarial sobre as atividades humanas. Ele utiliza um grande banco de dados, que inclui GPS, posicionamento Wi-Fi, triangulação por torres de celular, chips de identificação de freqüências de rádio e outros sensores.
"Existe todo um novo conjunto de indicadores que nunca foram medidos," disse Greg Skibiski, chefe-executivo da Sense Networks. "Conseguimos ver as pessoas se movendo entre lojas" e outros lugares. Esses padrões de deslocamento, relacionados a dados de renda, podem fornecer a atacadistas informações iniciais sobre o nível de vendas e quem está comprando nas lojas da concorrência.
Alex Pentland, professor do Laboratório de Mídia do Instituto de Tecnologia de Massachusetts e o responsável pelo projeto de pesquisa no dormitório, foi co-fundador da Sense Networks. Ele faz parte de uma nova geração de pesquisadores com acesso relativamente fácil a dados que, no passado, eram ou meticulosamente reunidos à mão ou adquiridos por questionários ou entrevistas que confiavam na memória e honestidade das pessoas.
Os pesquisadores do Laboratório de Mídia trabalharam com a Hitachi Data Systems, uma companhia japonesa de tecnologia, utilizando alguns recursos do laboratório para melhorar a eficiência dos negócios. Por exemplo, dando aos funcionários crachás com sensores que geram o mesmo tipo de dados produzidos pelos smartphones dos estudantes, a pesquisa determinou que a comunicação direta e pessoal é muito mais importante para o trabalho de uma organização do que se acreditava.
A produtividade cresceu 30% com o aumento da comunicação direta, segundo Pentland. Os resultados foram tão promissores que a Hitachi criou uma empresa de consultoria que reestrutura organizações por meio das técnicas dos pesquisadores.
Pentland chama sua pesquisa de "mineração de realidade", para diferenciá-la de uma geração anterior de mineração de dados, conduzida por métodos mais tradicionais.
Pentland "é o imperador da pesquisa com sensores em rede," disse Michael Macy, sociólogo da Universidade de Cornell, que estuda redes de comunicação e seu papel como redes sociais. Pessoas e organizações, disse, estão cada vez mais escolhendo a interação por meios digitais que registram marcas dessas relações. "Isso permite que cientistas estudem essas interações de maneiras que, a cinco anos atrás, ninguém imaginaria possíveis," disse.
Antes baseados em computadores pessoais em rede, os sistemas de inteligência coletiva estão cada vez mais voltados para potencializar redes sem fio de sensores digitais e smartphones. Em uma aplicação possível, grupos de cientistas e ativistas políticos e ambientais estão desenvolvendo redes de "detecção de engajamento."
No Centro de Monitoramento de Redes Integradas da Universidade da Califórnia, Los Angeles, por exemplo, os pesquisadores desenvolvem um serviço online que chamam de Relatório de Impacto Ambiental Pessoal, que constrói um mapa comunitário da qualidade do ar em Los Angeles. Ele pretende informar as pessoas como suas atividades afetam o meio ambiente e como tomar decisões a respeito de sua saúde. Os usuários podem mudar sua rotina de caminhadas ou corridas para horas diferentes do dia, dependendo da qualidade do ar do momento.
"Nosso mantra é tornar possível a observação do que era antes inobservável," disse Deborah Estrin, diretora do centro e cientista da computação da UCLA.
Mas, segundo Estrin, o projeto ainda enfrenta uma série de desafios, tanto a respeito da precisão dos pequenos sensores quanto da habilidade dos pesquisadores de saber ao certo que essa informação pessoal permanecerá privada. Ela é cética sobre os esforços técnicos para encobrir a identidade dos colaboradores individuais dos bancos de dados de sensores de redes.
Tentativas de obscurecer a identidade de indivíduos têm capacidade limitada, afirmou. Os pesquisadores encriptam os dados para proteger a identidade de uma pessoa, mas isso tem limites.
"Apesar de protegermos a informação, ela ainda está sujeita a intimações e à coação de chefes e esposas," ela disse.
Ela diz que ainda pode haver formas de proteger a privacidade. "Consigo imaginar um sistema em que os dados desapareçam," disse.
Grupos de ativistas já utilizam a tecnologia para melhorar a eficiência de sua mobilização. Um serviço chamado MobileActive ajuda organizações sem fins lucrativos ao redor do mundo a usar telefones celulares para aproveitar a especialização e energia de seus participantes, distribuindo alertas para ação, por exemplo.
O Pachube é um serviço online que permite a pessoas de qualquer lugar do mundo compartilhar dados de sensores em tempo real. Com o Pachube, alguém pode combinar e exibir dados como o custo da energia de um lugar, o monitoramento da temperatura e poluição, ou os dados transmitidos por uma bóia na costa de Charleston, Carolina do Sul, tudo criando um retrato repleto de informações sobre o mundo.
Esse quadro tão completo e constantemente atualizado vai sem dúvida redefinir as noções tradicionais de privacidade.
O doutor Pentland afirma que existem formas de evitar as armadilhas da sociedade vigilante que espreitam a tecnologia.
Quanto ao uso comercial dessa informação, ele propôs um conjunto de princípios derivados do direito comum inglês para garantir que as pessoas tenham direitos de propriedade sobre dados a respeito de seu comportamento. A idéia gira em torno de três princípios: que você tem o direito de possuir seus próprios dados, que você controla os dados coletados sobre você e que você pode destruir, remover ou reorganizar seus dados como desejar.
Ao mesmo tempo, ele argumentou que os direitos individuais de privacidade também precisam ser equilibrados com o bem público.
Citando a epidemia envolvendo a síndrome respiratória aguda grave, ou SARS, de anos recentes, ele disse que a tecnologia ajudaria agentes de saúde a observar o movimento de pessoas infectadas em tempo real, possibilitando o controle da dispersão da doença.
"Se pudesse ver os registros dos celulares, a situação poderia ter sido interrompida naquela manhã, ao invés de duas semanas depois," disse. "Sinto muito, mas isso supera as preocupações momentâneas de privacidade."
De fato, alguns pesquisadores de inteligência coletiva defendem que as preocupações acentuadas sobre os direitos de privacidade são um fenômeno relativamente recente na história humana.
"Os novos instrumentos de informação simbolizados pela Internet estão mudando radicalmente a possibilidade de como podemos organizar as atividades humanas de larga escala," disse Thomas W. Malone, diretor do Centro de Inteligência Coletiva do MIT.
"Por boa parte da história humana, as pessoas viveram em pequenas tribos onde tudo que faziam era conhecido por todos," disse Malone. "Em certo sentido, estamos nos tornando uma aldeia global. A privacidade pode acabar se tornando uma anomalia."
Fonte: Terra notícias