19.10.2009 -
Por isso, não cessava de consultar esses embusteiros chamados astrólogos, já que estes não usavam em suas adivinhações de quase nenhum sacrifício, nem dirigiam preces a nenhum espírito o que, consequentemente, é condenado e repelido com razão pela piedade cristã e verdadeira. Porque o bom é confessar-te, Senhor, e dizer-te: “Tem misericórdia de mim, e cura minha alma, porque pecou contra ti” (Sl 41, 5), e não abusar da tua indulgência para pecar mais livremente, mas ter sempre presente a sentença do Senhor: “Eis-te curado: não peques mais, para que te não suceda algo pior” (Jo 5, 14) – Mas estas palavras os astrólogos querem destruir, dizendo: “O impulso de pecar vem dos céus; foi Vênus, Saturno ou Marte que fizeram isto” – e tudo para que o homem, que é carne, e sangue, e soberba podridão, se sinta sem culpa, e atribua esta ao criador e ordenador do céu e das estrelas. E quem é este, senão tu, nosso Deus, suavidade e fonte de justiça, que dás a cada um de acordo com suas obras, e não desprezas ao coração contrito e humilhado?
Havia então um varão muito sábio, peritíssimo na arte médica, na qual era célebre; sendo procônsul, pôs com suas próprias mãos sobre minha cabeça insana a coroa da vitória do concurso; foi como procônsul, e não como médico, porque daquela minha enfermidade só tu me podias sarar, pois resistes aos soberbos e dás tua graça aos humildes. Contudo, deixaste acaso de cuidar de mim também por meio daquele ancião? Ou talvez desistisse de curar minha alma? Tendo-me familiarizado muito com ele, passei a ser assistente assíduo e freqüente de suas conversas, que eram agradáveis e graves, não pela elegância da linguagem, mas pela vivacidade das sentenças. Assim que ficou sabendo, por conversa, que eu me dedicava à leitura dos livros dos astrólogos, admoestou-me benigna e paternalmente a que os deixasse, e a que não gastasse inutilmente nessas quimeras meus cuidados e trabalho, que melhor empregaria em coisas úteis. Acrescentou que também ele havia cultivado aquela arte, a ponto de querer adotá-la, em sua juventude, como profissão para ganhar a vida, pois, se havia entendido Hipócrates, podia também entender aqueles livros; por fim, deixara aqueles estudos pelos da medicina, por causa da sua falsidade, não querendo, como homem sério, ganhar o pão enganando os outros. “Mas tu, disse-me ele – que tens para manter entre os homens tuas aulas de retórica, segues essas mentiras não por necessidade, mas por mera curiosidade; mais um motivo para que acredites no que te digo, pois cuidei de aprendê-la tão perfeitamente que quis viver apenas de seu exercício”.
Indaguei-lhe então por que muitas das coisas prognosticadas pela tal ciência se revelavam verdadeiras, respondeu-me, como pôde, que a força do acaso está espalhada por toda a natureza. “Se alguém – dizia ele – consultando as vezes as páginas de um poeta qualquer, encontra um verso que, apesar do poeta pensar em coisas muito diversas quando o compôs, adapta-se admiravelmente ao assunto que o preocupa; assim pois nada tem de estranho que a alma humana, movida por instinto superior, inconsciente do que se passa no seu íntimo, diga, não por arte, mas por sorte, algo que corresponda aos atos e gestos do consulente”.
E isto, Senhor, me ensinou ele, ou melhor, me ensinaste por teu intermédio, e delineaste em minha memória o que eu mesmo mais tarde devia procurar. Mas então, nem ele, nem meu caríssimo Nebrídio, jovem muito bom e casto, que zombava de toda aquela arte divinatória, puderam me convencer a abandoná-la, porque ainda impressionava-me mais a autoridade daqueles autores. Não tinha eu encontrado ainda o argumento evidente que procurava, que me demonstrasse sem ambigüidade que os presságios acertados dos astrólogos são obra da sorte ou casualidade, e não da arte de observar os astros.
Santo Agostinho
“Confissões”, IV, c. III
Fonte: http://beinbetter.wordpress.com/