Artigo do Padre José do Vale: INTELIGÊNCIA X BOÇALIDADE


01.10.2009 - “Imagine um homem vivendo na segunda metade do século XIX, primeira metade do século XX, na Inglaterra anglicana, em tempos de um racionalismo extremo, em que desabrochava o que Pe. Leonel Franca veio a chamar, mais tarde, de ateísmo militante. Imagine também que este homem seja católico, defensor ardoroso do papa, grande admirador da Idade Média, grande crítico tanto do capitalismo quanto do comunismo. Imagine um homem volumoso e de talento extraordinário que todos, mesmo seus maiores adversários, admiravam profundamente. Imagine esse homem atraindo o interesse do mundo anglofônico por décadas, com sua extraordinária produção literária: 80 livros, centenas de poemas, umas 200 novelas, 4 mil ensaios e diversas peças teatrais. Começamos a ter uma pálida idéia de quem foi Gilbert Keith Chesterton”, escreve o professor da UFMG, Antonio Emílio Angueth de Araújo.
O grande pensador e escritor brasileiro Gustavo Corção (1896-1978), escreveu: “Quero dizer que a inteligência que se interesse, hoje, por entrar em contato com as realidades mais significativas da cultura universal, que deseje vivamente estar inserida nesse hoje do mundo, não pode deixar de lado, como peça meramente acessória, e quiça inútil, a imensa obra de Gilbert K. Chesterton”.
Chesterton já foi chamado de “apóstolo do senso comum”, segundo o filósofo belga Marcel de Corte (1905-1994), “reconhecer se dependente em face da realidade e do seu Princípio transcendente, confessar, ao mesmo implicitamente, o laço nupcial que une o ser do homem ao ser universal à sua Causa”. E por que isso é tão importante? De Corte completa: “eis a condição essencial imposta ao exercício da inteligência”. E por que “re-estabelecer”? Porque, como ensina esse filósofo: “foi no século XVIII que se romperam de todo as relações entre a inteligência e o real e entre o homem e o universo”. Assim, sem o senso comum a inteligência se perde e por isso é tão importante ler o “apóstolo do senso comum”.
Chesterton nasceu em um bairro de Londres, em 1874. Antes de ser escritor, tentou a pintura, e foi na escola de arte que freqüentava que conheceu as tendências filosóficas e estéticas de seu tempo. Foi também um jornalista de grande prestígio. Morreu aos 62 anos, em 1936, sem descendência, deixando uma volumosa obra.
Como disse um escritor, “depois da morte de Chesterton o mundo ficou mais triste e confuso”.
Os leitores brasileiros têm ao seu dispor algumas obras traduzidas do escritor. Podem-se encontrar Ortodoxia (obra-prima sobre sua conversão ao catolicismo), as várias histórias do Pe. Brown (seu mais conhecido personagem, uma padre-detetive, um metafísico a lidar com crimes misteriosos), O Homem que foi Quinta-feira e duas biografias memoráveis, de Santo Tomás de Aquino e de São Francisco de Assis.
Chesterton é o ícone da inteligência, o ouro da intelectualidade e o monumento da ortodoxia da fé católica.
Hoje, mais do que nunca, precisamos urgentemente de muitos Chestertons.
Como diz o sociólogo polonês Zygmunt Bauman: “Vivemos numa sociedade líquida, com uma vida e amor líquido”.
Para o grande pensador que é o Papa Bento XVI: “Vivemos a ditadura do relativismo e o medo da verdade”.
Tudo isso é causado pela ausência de Deus. Uma sociedade sem Deus é uma sociedade de cultura de morte.

SEM FÉ E SEM RAZÃO

A razão e a fé já tiveram dias melhores que o tempo atual em sua conturbada relação histórica. Polemizaram entre os gregos; dialogaram até meados do século VII; se enlaçaram na Idade Média e se divorciaram na modernidade. Esta separação causou danos a ambos os lados e deixou muitos de seus filhos desamparados.
Bento XVI, como bom filho desta frutuosa relação, tem uma proposta, uma proposta de reconciliação entre a fé e a razão, entre a teologia e a filosofia, entre o temporal e o espiritual, e lança uma pergunta que ecoa em todo o Ocidente, e por que não dizer no mundo: que civilização queremos?
O Papa Bento XVI bem expressou este tempo “Estamos nos aproximando de uma ditadura do relativismo que não reconhece nada como definitivo e tem como um valor maior o ego e os desejos do indivíduo”, e no famoso de Regensburg consolidou a questão: “Para a filosofia é, de maneira diferente, para a teologia, ouvir as grandes experiências e convicções das tradições religiosas da humanidade, especialmente a da fé cristã, constitui uma fonte de conhecimento; recusar-se significaria uma limitação inaceitável do nosso ouvir e responder.”
O compromisso com a verdade sempre fez parte da vida intelectual e espiritual do Papa Bento XVI:
Parecia-me, por um lado, encontrar nele a ligação entre a tarefa anterior de professor e a minha nova missão; o que estava em jogo, e continua a estar – embora com modalidades diferentes -, é seguir a verdade, estar ao seu serviço. E, por outro, escolhi este lema porque, no mundo atual, omite-se quase totalmente o tema da verdade, parecendo algo demasiado grande para o homem; e, todavia, tudo se desmorona se falta a verdade.
(Explicação pela escolha do lema “Colaborador da verdade” ao ser sagrado Bispo)

Para o Papa Bento XVI, usar a razão, a fé e a verdade para todo fundamento da dignidade da pessoa humana: “Dispomos de um grande espaço de ação em que nos devemos sentir unidos no serviço dos valores morais fundamentais. A dignidade da pessoa e a defesa dos direitos, que brotam desta dignidade, devem construir a finalidade de todos os projetos sociais e de cada esforço realizado em vista da sua atuação”. (Discurso de Bento XVI por ocasião do encontro com os muçulmanos em Colônia, 20 de agosto de 2005).

CONCLUSÃO

Em uma sociedade sem Deus vive-se uma fé e uma razão morta. A boçalidade toma espaço da verdade.
Deus era o centro, depois o homem e hoje são o relativismo, panteísmo e politeísmo pós- moderno. Tudo pela natureza, tudo pelas realizações materialistas.
Vivemos a era criminal da inteligência, da guerra contra a verdade. A escravidão do ser humano pelo erro, pela mentira, e pela hipocrisia. Domina a indústria do engano, da fraude e da corrupção.
A impunidade liquidou a intelectualidade e a brutalidade do mal derrotou o pensamento construtivo.
Os glamoures dos tolos estamos vendo na espetacularização do reality shows.
O cérebro é movido a silicone, o corpo efêmero ao anabolizante e a reação superficial pelo rivotril.
O teatro da internet fica por conta da:
. Vaca holandesa.
. Anjos de asas quebradas.
. Rei nu e sem coroa.
. O luxo no lixo.
. O rico favelado.
. O bacana e suas drogas.
. O intelectual analfabeto.
. Políticos sem políticas.
. Governos desgovernados.
. Casa sem família e famílias sem lares.
. Religião sem Deus e Deus sem igrejas. A miséria da “fé cega” e a desgraça dos fiéis pela ganância de riqueza pregada pela teologia da prosperidade. “Deus” continua sendo fonte de renda e inspiração para os homens bombas.
Essa é a arena do mundo cão sem razão.
Onde encontrar a inteligência de Chesterton?


Pe. Inácio José do Vale
Pároco da Paróquia São Paulo Apóstolo
Professor de História da Igreja
Faculdade de Teologia de Volta Redonda
e-mail: [email protected]

FONTE:

Conhecimento Prático – Filosofia, nº 18, PP. 59 e 61.

MARUJO, Antônio. Bento XVI: um perfil biográfico, São Paulo: Paulinas, 2007.

CHESTERTON, G. K. Ortodoxia, São Paulo: Mundo Cristão, 2008.


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