Cheia persiste e cidade espera plano de Deus no Maranhão


20.05.2009 - Sentado em uma cadeira metálica, na laje superior de sua casa térrea, Genésio Alves dos Santos contemplava a rua inundada e imaginava quando poderia retomar sua vida como proprietário de um bar. Tudo depende, claro, de quando a água, que nos últimos dias chegou quase aos telhados, depois das piores inundações na região em mais de duas décadas, enfim recue, liberando as ruas da humilde Trizidela do Vale, uma cidade no Nordeste do Brasil.

"O número 71, ali, estava coberto ontem", disse Souza, 58 anos, apontando para uma casa do outro lado da rua. "Hoje a maior parte da casa está visível. A água está baixando, devagar. Talvez pela metade de junho tudo tenha passado". "Precisamos acreditar que Deus tem um plano", disse.

Já faz mais de um mês que chuvas torrenciais causaram a inundação dos lagos que cercam 40% da cidade e do rio que a atravessa, forçando 11 mil de seus 18,4 mil moradores a abandonar suas casas. Os suprimentos de emergência estão chegando, aos poucos, e só resta a moradores como Souza esperar pacientemente que as águas recuem.

A inundação transformou essa cidade de telhados vermelhos em uma comunidade aquática na qual o único transporte são barcos - ou a natação. A crise já persiste há algumas semanas, e é um teste para o espírito imperturbavelmente otimista do povo de Trizidela, uma cidade humilde no interior profundo de um dos mais pobres Estados brasileiros, o Maranhão.

Os moradores estão tentando derrotar o tédio causado pela falta de trabalho ou aulas, e estão pescando nas ruas e praticando mergulhos acrobáticos, da estrutura de uma ponte para as águas densas do rio abaixo. Inundações fortes já tinham acontecido na cidade. Mas muitos dizem que nunca viram a água chegando tão alto - ou demorando tanto para recuar.

"A situação se tornou precária, e a autoestima das pessoas está bem abalada", disse Francilene Silva, 22 anos, contemplando a cidade inundada da sacada da casa de uma amiga. "Isso já está demorando demais. Muita gente agora está realmente assustada".

As casas mostram marcas de água acima do nível das janelas. As lápides do principal cemitério da cidade são visíveis por sobre as águas, mas apenas parcialmente. O único sinal de que havia uma praça pública em um determinado ponto é um grande painel de anúncios por sobre o local onde ficava o portão de entrada.

Transporte
A principal via de Trizidela, a rua Santo Antônio, continua movimentada, mas hoje o que se ouve nela é o ruído de motores de popa e remos penetrando na água. Os pequenos barcos disponíveis servem como transporte para todo tipo de morador e suas posses - mulheres com bebês no colo, motocicletas, gaiolas de passarinhos -, e se movimentam de maneira ordeira de rua a rua, sem que haja qualquer policiamento de trânsito visível.

Em um percurso pelas ruas inundadas em um pequeno barco a motor, parece possível erguer a mão e tocar uma linha telefônica que pende baixa por sobre a água, se eu me levantar. Dezenas de gatos observam a cena, dos telhados, e contemplam o barco praticamente na altura em que estou, enquanto passamos pela casa de Souza e por um grupo de crianças que, em trajes de banho, usam câmeras de pneus como bóias, aproveitando a oportunidade de brincar ainda que não saibam nadar.

Um homem está deitado em uma rede pendurada por entre os dois batentes da porta de uma loja de autopeças, e seus olhos fechados parecem indicar que esteja adormecido. Ele foi contratado para guardar o estabelecimento dos ladrões que rondam a cidade à noite em canoas.

Respirando pesadamente, Rondiney Silva nadou até o barco para informar que ladrões haviam invadido sua casa e que sua família, como muitas outras, está sobrevivendo graças à cesta básica de alimentos fornecida pelas autoridades locais e estaduais a intervalos de cerca de duas semanas. "Quando a água enfim baixar, as pessoas sofrerão ainda mais", disse Silva, 19 anos. "Deixarão de receber as doações de alimentos, toda a ajuda. E teremos de reconstruir todo o nosso bairro".

Documentário
Silva, que trabalha como DJ, vinha usando o tempo livre para gravar um documentário sobre as inundações - até que seu equipamento de vídeo fosse danificado pela alta das águas. Ele mexeu em algum lugar sob o teto da casa e apanhou um DVD com as imagens que tinha filmado. "Queria mostrar as pessoas daqui da maneira pela qual elas vivem, os bons momentos, as ocasiões engraçadas", disse.

Para a maioria dos moradores da cidade, deixar Trizidela não é uma opção. As casas aqui custam menos de R$ 5 mil, mas são muito mais caras em outras cidades, dizem moradores. A família média local tem renda de apenas R$ 253 ao mês, perto da metade do salário mínimo mensal brasileiro de R$ 465.

Ainda assim, uma mudança talvez fosse a solução mais aconselhável. Os climatologistas afirmam que o Brasil vem experimentando padrões climáticos mais extremos nos últimos anos, que incluem secas e inundações intensas, e essa tendência deve continuar pelas próximas décadas. Abril foi o terceiro mais úmido mês dos últimos 50 anos, no Nordeste brasileiro.

Frustração
Janio de Souza Freitas, o prefeito de Trizidela, quer reduzir os riscos que as inundações acarretam pela transferência de mil famílias a locais mais elevados, em um novo bairro. No ano passado, houve uma inundação que também causou sérios problemas, e outras inundações sérias já haviam ocorrido na cidade em 1974 e 1985. Naquela época, a população era de menos da metade da atual, e pouca gente previa que os desastres continuariam, ele afirmou.

Por enquanto, as autoridades municipais precisam enfrentar a frustração causada pela entrega lenta de suprimentos de emergência e pelo esgotamento dos recursos do município. As principais indústrias da cidade são duas fábricas de cerâmica e uma fábrica de sabão. A inundação deixou Trizidela sem água potável já há um mês. Os moradores que continuam a vadear por águas de inundação saturadas de gasolina, óleo diesel e produtos químicos de limpeza doméstica, em seus deslocamentos flutuantes pela cidade, enfrentam risco de saúde, afirma o prefeito.

Além disso, todo mundo parece frustrado pela exploração que os proprietários de barcos e canos vêm praticando; eles cobram cerca de R$ 2 por uma viagem de perto de 3 km entre a vizinha Pedreiras e a ponta oposta de Trizidela, um percurso de cerca de 20 minutos. "Eles estão lucrando muito com isso, o que não é certo", disse Coutinho Neto, o porta-voz da prefeitura.

"Isso está se tornando muito trabalhoso", disse Raimunda Santos Nery, durante uma travessia de canoa em companhia de sua neta Camila, 7 anos. A casa de Nery fica em um ponto mais alto da cidade, e foi poupada pela inundação. Mas ela diz que ainda assim realiza a viagem de ida e volta em um barco duas vezes por dia, o que lhe custa quase R$ 8, e não tem condições de continuar pagando a passagem por muito mais tempo.

Ainda assim, apesar de todos os desafios, os moradores de Trizidela se recusam a admitir derrota. Todo mundo parece ter um caniço, e saber como capturar alguma coisa que sirva para uma refeição. "Sete por cinco!", grita um homem que está apanhando peixes com uma pequena rede, ao lado de uma ponte.

Na noite de sexta-feira, as crianças amarraram uma longa corda a uma árvore e fizeram malabarismos por sobre as águas enlameadas do rio. Outras, ainda pequenas, subiram a uma ponte de 6 m de altura e de lá saltavam para o rio, dando cambalhotas.

"As pessoas aqui gostam de se divertir", disse Rafael Leonardo, 26 anos, enquanto assistia às crianças se balançando da árvore. "Enfrentamos inundações como essa há mais de 20 anos. A atual é uma das piores, mas provavelmente não será a última".

Fonte: Terra notícias


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