Artigo Extra - www.rainhamaria.com.br - 03.03.2009 -
Vou contar a você a minha curta história.
Fui gerada unicelular, como você e como todos, mas também não era um protozoário ou levedura. Tinha 46 cromossomos e neles um genoma humano; não um conjunto de genes qualquer, genérico, mas só meu, irrepetível.
Esse conjunto de genes definia que eu era mulher, que teria olhos escuros e cabelos encaracolados, como mamãe. Ela – mamãe, ou seja, a doadora do óvulo - se chama Renata e tem 25 anos.
Papai... Bem, para falar a verdade, papai nunca soube da minha existência. Tudo o que ele fez foi uma doação para um banco de esperma. Devo admitir que não nasci de um ato de amor. Mas um teste de paternidade poderia identificá-lo com certeza. Chama-se Rodrigo e toca em uma banda.
Fui precocemente batizada. Não, eu jamais seria batizada como Mariana, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Acho que eu gostaria de chamar-me Mariana... ou Renata, como mamãe. Mas fui “batizada” célula-tronco XB 407. Isso significava que eu jamais seria acolhida por um endométrio uterino. Iria para uma placa com meio de cultura, como aquela, aliás, em que fui gerada. Não sei de onde tiraram a palavra “proveta”, eu nunca estive em uma...
Pouco depois decidiram que eu seria um fígado. Começaram então a provocar alterações. Essas alterações “desligaram” os genes dos meus olhos escuros, dos cabelos encaracolados e muitos outros. O meu metabolismo começou a ser modificado para que eu me transformasse em um fígado.
Os cientistas à minha volta diziam que isso era uma grande coisa. Eu poderia um dia salvar uma vida. Mas devo dizer que não acho justo... Não me perguntaram. Por que essa outra pessoa teria direito a uma vida inteligente e eu não? Eu também ia desenvolver um cérebro. Teria talento para a música, como papai. Isso já estava nos meus genes, como os olhos escuros e os cabelos encaracolados de mamãe.
Os genes relacionados com a música foram “desligados”, pois eu ia ser fígado. Bem, talvez fosse melhor conformar-me com meu destino. Ao menos eu ia salvar outra vida...
Eu já havia crescido para um bom grupinho de células Então alguém me olhou ao microscópio e disse: “Parece que a XB 407 está com algum problema. Vou descartar.” Assim, fui para o esgoto, fazer companhia aos protozoários e a muitos outros pequenos seres vivos, como se eu fosse apenas mais um deles...
Os meus cromossomos diziam que eu era uma menina, Mariana ou Renata, de olhos escuros e cabelos encaracolados, com talento para música... Mas eu não pude bradar pelos meus direitos. Os genes que dariam origem à minha boca foram calados. Você também foi, um dia, uma celulazinha, como eu... mas que teve mais sorte. Melhor dizendo, que foi respeitada. Você não quer ajudar a lutar pelos meus direitos, já que eu nunca teria como fazê-lo?
Até aqui, o depoimento de “Mariana”. Naturalmente, deixei falar a minha fantasia. Nenhum dos milhares (milhões?) de “Marianas” e “Josés” que estão sendo tratados como cobaias tem consciência do que está sendo feito com eles. Mas nós temos, ou ao menos deveríamos ter.
Agora, começaremos a ter embriões humanos obtidos também por clonagem. Cópias genéticas de “Renatas” e “Rodrigos”, para serem transformados em fígados. Ou melhor, em tentativas de fígado, porque ainda falta muito para que venhamos a entender os processos envolvidos, que são extremamente complexos e dependem de múltiplos fatores.
A ciência apresenta-nos várias outras possibilidades para o desenvolvimento de órgãos, sem lesar direitos de ninguém. Por que não direcionar nossos esforços exclusivamente para elas?
Dra. Lenise Aparecida Martins Garcia
Departamento de Biologia Celular
Universidade de Brasília
Fonte: Apostolado Sociedade Católica - www.sociedadecatolica.com.br