01.11.2008 - No silêncio quase geral dos meios de comunicação, no sul do Sudão está se consumando um genocídio contra uma inerme população civil: a denuncia é do bispo de Tombura-Yambio, Dom Edward Kussala.
Na região equatorial ocidental da África continua a atuar a guerrilha ugandense do Exército de Libertação do Senhor liderada por Joseph Kony, responsável por atrozes crimes nos últimos 20 anos. A guerrilha, no último mês de março, fez um acordo de paz com o governo de Uganda, mas até agora sempre adiou a assinatura definitiva do mesmo. Os rebeldes se estabeleceram no sul do Sudão aterrorizando a população civil, em particular na cidade de Yambio, onde centenas de crianças foram seqüestradas e escravizadas. A Rádio Vaticano recolheu o grito de dor de Dom Kussala:
“Sim, é uma situação verdadeiramente dramática. Estou desconcertado pela presença da guerrilha em Yambio. Desde o acordo de paz, nesta área nunca houve paz, por causa da presença dos rebeldes ugandenses, que causou conseqüências trágicas para a população. E as Nações Unidas decidiram, junto com o governo do sul do Sudão hospedar essas pessoas dentro do nosso país. Mas eles não são sérios no que diz respeito à paz. Nós soubemos que foram conseguidos acordos de paz, mas não vemos sinais concretos disso. Kony, que é o líder deste Movimento de rebeldes, vive ali e as Nações Unidas o protegem, lhe dão de comer; o seu acampamento é precisamente dentro do território de uma das minhas paróquias. Os rebeldes de vez enquando seqüestram as pessoas. Por isso eu tenho perguntas a fazer ao governo e à comunidade internacional; como é possível que o povo possa ser deixado nas mãos dos rebeldes e não se possa fazer nada para impedir isso? Até agora os rebeldes já seqüestram mais de 500 crianças”.
P. Os seqüestros ocorrem na sua diocese?
R. “Sim, na minha diocese. E a pergunta é: para onde vão essas crianças? E quando serão restituídas? Quem fará pressão sobre esses homens a fim de que restituam as crianças? Os pais pedem com angústia. Eu fui visitar algumas paróquias e me disseram: “Bispo, as minhas crianças foram seqüestradas, o que posso fazer para reavê-las””?
P. Por que as Nações Unidas dão alimento ao líder da guerrilha?
R. “Pensam de acalmá-lo, de agradá-lo e convidá-lo assim aos colóquios de paz. Mas este homem não está interessado em um acordo de paz. Nós sabemos que ele está se armando, está se reforçando e por isso poderia se verificar todo tipo de coisa. Creio que a comunidade internacional acordará somente no último momento, como sempre: quando as coisas tiverem já ocorrido. Então retornará sobre os seus passos dizendo: “Queremos ajudar vocês!”. Isso é algo que está ocorrendo e é somente uma questão de tempo. Nós também fazemos perguntas sobre a seriedade do governo sudanês: sei muito bem que o governo ugandense se esqueceu desta guerra, pois o líder da guerrilha não se encontra mais em Uganda e não é mais ali que está causando problemas; mas me pergunto; Quanto o meu governo, o do Sudão, está realmente preocupado com essa situação”?
P. São muitos os deslocados?
R. “Sim, são muitos os deslocados que se transferiram do interior para as cidades que agora estão super-lotadas, porque as pessoas não podem mais viver nos vilarejos; eles têm medo de ir até a floresta porque podem ser capturados. O resultado é a fome e uma grande necessidade de ajuda daquilo que é essencial. O nosso grito é esse: quem restituirá as nossas crianças seqüestradas pelos guerrilheiros? Quem nos restituirá as mulheres e as demais pessoas que foram seqüestradas? Quem nos restituirá a paz? Essas são perguntas às quais não sabemos responder. A coisa trágica é que o líder da guerrilha quando chegou aqui realizou atrocidades, matou e depois disse que estava pronto para um acordo de paz. Depois, voltou atrás e recomeçou a infligir graves sofrimentos à população local. E ninguém reagiu e não reage, ninguém faz nada para detê-lo”. (SP)
Fonte: Rádio Vaticano
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Lembrando...
Sinal dos Tempos: Meninas viram soldados na África
26.08.2007 - Aos 12 anos, Lucy Aol segurava firme um rifle e se preparava para uma emboscada contra soldados do governo. Aos 13 anos, um comandante rebelde uma década mais velho casou-se com ela. Aos 16, ela já era mãe.
Aos 21, com o rosto renovado e radiante, usando uma camiseta limpa e com o cabelo cuidadosamente trançado, Aol é uma estudante universitária de saúde ambiental na capital de Uganda, e planeja usar seu conhecimento para melhorar a saúde de seu país massacrado pela guerra.
Aol teve uma trajetória surpreendente de soldado-mirim a jovem mulher de futuro, mas outras milhões de crianças em toda África continuam vítimas da guerra – órfãs, forçadas a sair de casa, sem oportunidade de educação e, como Aol, forçadas a lutar em conflitos iniciados por seus ancestrais.
Todavia, lentamente, a campanha mundial contra o horror dos soldados-mirins, e a perseguição dos responsáveis como criminosos de guerra, começou a trazer resultados.
Segundo estimativas, as meninas são cerca de 30% dos guerrilheiros infantis. Elas enfrentam dificuldades que os garotos não, como o estupro e o estigma que ele traz, tornando difícil para que essas garotas voltem a suas comunidades.
Aol tinha 12 anos quando foi seqüestrada por um temido grupo rebelde de Uganda, forçada a andar centenas de quilômetros até um acampamento no vizinho Sudão, onde a ensinaram a usar uma arma de fogo.
“Fomos usados como escravos”, diz Aol, olhando para a parede do apertado dormitório na Faculdade de Medicina Mulago, de Kampala. “Costumávamos trabalhar na roça ou coletar madeira para fogo das sete horas da manhã até às cinco da tarde sem nenhum alimento. Se você cometesse um erro ou se recusasse a trabalhar, eles nos batiam... as três garotas que foram tiradas da minha cidade morreram espancadas”, disse ela.
Aol foi capturada pelo Exército de Resistência do Senhor, um grupo rebelde sediado no norte de Uganda que estima-se ter seqüestrado 25 mil crianças durante os seus 20 anos de rebelião contra o governo. Negociações de paz estão em andamento, mas os pedidos para libertação de crianças são refutados com a negação de que elas estão sendo coagidas a se tornarem soldados.
De acordo com o Human Rights Watch, os soldados-mirins assumem diversas funções, como espiões, porteiros, desarmadores de campos minados, concubinas e também como combatentes ativos, freqüentemente servindo nas frentes de batalha e sustentando um dos conflitos mais longos e sangrentos da África.
O número de soldados-mirins – definidos pela lei internacional como crianças menores de 18 anos – não pode ser estimado, dizem os grupos humanitários. E apesar de a maioria ser recrutada à força, muitos se juntam a eles por desespero. Para os órfãos ou os que estão separados de suas famílias, o alistamento pode ser a única forma de conseguir abrigo, comida e companhia.
As crianças são facilmente manipuláveis e podem ser criadas desde a tenra idade para obedecer ordens sem questionamento. Funcionários de proteção às crianças citam numerosas táticas usadas pelos cruéis comandantes para coagir seus jovens cativos à obediência. Em Serra Leoa, soldados-mirins recebiam um coquetel de pólvora e cocaína antes da batalha. Na Libéria, eles eram forçados a fazer coisas que os isolariam permanentemente da comunidade, como matar membros da família.
Algumas crianças que passaram pelo Exército de Resistência do Senhor, um grupo pseudo-religioso com uma plataforma política muito vaga, contam que eles passavam óleo nos jovens guerrilheiros para fazê-los acreditar que eram à prova de balas.
“Fui somente uma vez par ao campo de batalha”, diz Aol. “Preparamos uma emboscada para os soldados do governo e esperamos. Mas depois de três dias eles não vieram, então voltamos e outro grupo tomou nosso lugar. Os soldados vieram e houve uma batalha. Eles mataram 16 membros do ERS. Todos eram crianças e alguns eram meus amigos.”
Aol disse que a maior parte dos guerrilheiros do ERS em seu acampamento tinha entre 10 e 15 anos.
“Você recebe treinamento em armas por uma ou duas semanas, então é mandado para uma batalha mas a maioria não sabe como lutar, então são mortos”, diz ela.
“Fico triste porque jovens como eu morrem não por causa de algo em que acreditam, mas por que são forçados a lutar. Os rebeldes dizem: ‘Não desista – não corra’ ou então eles o matam.”
Aos 13 anos Aol tornou-se a terceira mulher de um comandante do ERS. Ela disse que sofreu “abuso sexual” e apanhava com regularidade das outras esposas mais velhas. Ela considerou o suicídio.
Após três anos de sofrimento, Aol decidiu fugir. Ela conseguiu convencer seu “marido” rebelde que uma vida melhor esperava por eles em casa. Uma manhã, temendo por suas vidas, voltaram para o Sudão.
Levou três semanas para eles chegarem a Uganda. Uma vez lá, foram cercados por soldados do governo. Aol foi capturada e seu marido, o comandante, foi morto a tiros. Ela foi levada para um centro de ex-combatentes onde recebeu aconselhamento e descobriu que estava grávida. Ela deu à luz a uma menina, Winifred Bianca, quatro meses depois.
Voltar à vida normal foi difícil. Ela não tinha dinheiro para continuar seus estudos, e apesar de sua família lhe dar as boas vindas, os vizinhos – cuja filha foi morta pelos rebeldes – não a aceitavam assim tão bem.
“Eles perguntavam por que eu estava viva e sua filha não. Eles diziam que eu havia matado pessoas e que eu poderia matar meus pais”, disse ela.
As jovens mães têm seus filhos levados ao ostracismo como “crianças Kony”, em referência a Joseph Kony, o auto-proclamado profeta que lidera o Exército de Resistência do Senhor.
“As pessoas dizem que temos fantasmas que nos seguem porque matamos... eles apontam para nós e falam mal de nós”, diz Aol.
É mais difícil para as guerrilheiras meninas que retornam, de acordo com Susan McKay, professora de Estudos da Mulher e Internacionais na Universidade de Wyoming, que estuda o assunto.
“As garotas que retornam a suas comunidades são vistas como tendo violado mais normas sociais do que os garotos”, diz ela. “Elas têm dificuldade em se casar e seus filhos são freqüentemente estigmatizados.” A pobreza leva muitas à prostituição, diz ela, e até mesmo de volta ao exército de rebeldes do qual fugiram.
Acordos de paz feitos recentemente, incluindo os do Sudão, Costa do Marfim e Burundi, incluíram uma estrutura para ajudar as crianças a voltar para a sociedade. Radhika Coomaraswamy, representante das Nações Unidas para Crianças e Conflitos Armados espera ver parágrafos padronizados em todos os acordos que terminam com as guerras das quais crianças participam.
Apesar de ela enfatizar que ainda há muito trabalho a ser feito, Coomaraswamy acredita que o mundo já deu alguns passos significativos. Mais de 100 países ratificaram um tratado da ONU banindo o alistamento de crianças, e um grupo de trabalho que se reporta diretamente ao Conselho de Segurança da ONU sobre situações envolvendo os soldados-mirins tem tido sucesso.
Parte desse sucesso foi a decisão tomada pelos rebeldes da Costa do Marfim de entrar em diálogo com as equipes da ONU e aceitar um plano para libertar as crianças.
A lei também teve resultados. Em 20 de junho, a corte apoiada pela ONU que julga crimes cometidos na guerra civil de Serra Leoa condenou três ex-líderes da junta que usavam soldados-mirins – o primeiro veredito desse tipo, de acordo com Corinne Dufka do Human Rights Watch. Cada um deles foi sentenciado à prisão por 45 a 50 anos.
A Corte Internacional de Crimes trata o recrutamento de crianças com menos de 15 anos para forças armadas como um crime de guerra. O primeiro caso antes da corte de Hague, que começou esse ano, foi o de um ex-líder de milícia no Congo, Thomas Lubanga, e focou no uso de soldados-mirins.
O caso de Lubanga já está agindo como uma contenção na África, diz Coomaraswamy. Muitos analistas acreditam que a decisão por parte do Exército de Resistência do Senhor de entrar em negociações de paz no ano passado foi forçada pela condenação de seus cinco líderes principais, incluindo Kony, por acusações de forçar o alistamento e usar soldados-mirins. Acredita-se que o ERS não seqüestrou mais nenhuma criança desde que os diálogos de paz produziram um cessar-fogo em agosto.
Enquanto isso, Lucy Aol é hoje uma moça eloqüente e inteligente de 21 anos de idade. Com a ajuda da mãe, de uma pequena herança de seu pai – que morreu no ano passado – e de seu próprio trabalho duro e determinação, ela guardou dinheiro suficiente para entrar na Faculdade de Medicina Mulago, situado no hospital de maior prestígio de Uganda.
Sua filha, hoje com 5 anos, fica com a mãe de Aol enquanto ela estuda.
“Não tenho dinheiro para mandar Winifred para a escola enquanto eu estiver estudando, então ela tem de esperar. Eu tenho mais um ano, então poderei arrumar um emprego e ela irá para a escola”, diz Aol, radiante. “Quero que minha filha tenha todas as oportunidades que eu nunca tive. Sua educação é muito importante para mim. Acho que ela pode se tornar uma advogada.”
Aol balança a cabeça e sorri quando questionada se ela imaginava que teria um final feliz enquanto estava com os rebeldes.
“Agora, quando olho para mim, vejo uma pessoa completamente diferente da que estava lá no campo”, diz ela. “Minha filha e eu temos um futuro a despeito de tudo o que aconteceu.”
Fonte: G1