ROMA - «A Sagrada Escritura é essencial para conhecer Cristo», explica nesta entrevista o cardeal Albert Vanhoye, um dos biblistas contemporâneos mais reconhecidos no mundo, poucos dias antes do próximo Sínodo.
O cardeal Vanhoye, jesuíta, ex-reitor do Instituto Bíblico Pontifício e ex-secretário da Comissão Bíblica Pontifícia, nasceu em 24 de julho de 1923, em Hazebrouck, na diocese de Lille, ao norte da França, perto da fronteira com a Bélgica.
De 1963 a 1998, foi professor do Instituto Bíblico Pontifício de Roma, onde exerceu uma intensa atividade didática no ensino de Exegese do Novo Testamento e em diversos cursos e seminários sobre sua especialidade.
Participou ativamente na redação de documentos da Comissão Bíblica Pontifícia, no sulco do trabalho iniciado pelo Concílio Vaticano II, tais como: «A interpretação da Bíblia na Igreja» (1993) e «O povo judeu e as sagradas Escrituras na Bíblia cristã» (2001).
Como reconhecimento a seu serviço à Igreja neste campo, Bento XVI o criou cardeal no Consistório de 24 de março de 2006. O próprio Papa o nomeou membro do próximo Sínodo, que acontecerá em Roma em outubro sobre «A Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja».
Nesta entrevista concedida à Zenit, explica o que é para ele a Bíblia e o que espera da citada assembléia mundial de bispos. A segunda parte será publicada no serviço de amanhã.
– Como e quando o senhor começou a interessar-se pelo estudo da Palavra de Deus?
– Cardeal Vanhoye: Meu interesse pela palavra de Deus começou certamente desde a infância, mas se aprofundou e intensificou especialmente com o estudo da teologia. Quando me preparava para a ordenação sacerdotal, eu me apaixonei pelo Evangelho de João. Pude estudá-lo porque, antes da teologia, durante dois anos, tive de lecionar grego clássico de nível superior a jovens jesuítas que se preparavam para graduar-se na Sorbonne de Paris. Portanto, estava em contato direto com os textos gregos, tanto do Novo como do Antigo Testamento.
Em especial, estudei o tema da fé no Evangelho de João, um tema evidentemente fundamental. Para João, a fé consiste em crer em Cristo como Filho de Deus, que não é simplesmente a adesão às verdades reveladas, mas sobretudo adesão a uma pessoa, que é o Filho de Deus, que faz a obra do Pai, em união com o Pai, e que nos convida também a realizar sua obra.
– Posteriormente converteu-se em um dos maiores especialistas na Carta aos Hebreus...
– Cardeal Vanhoye: Deste estudo de São João, saíram alguns artigos, mas por questão de tempo – eu tinha de exercer a docência –, não pude continuar este trabalho. Ao mesmo tempo, percebi que havia encontrado coisas muito interessantes na Carta aos Hebreus e que, portanto, podia, dedicando alguns meses cada ano, preparar uma tese sobre este escrito, então pouco estudado.
Portanto, meu interesse se centrou na Carta aos Hebreus, que é um escrito muito profundo, uma síntese de Cristologia sob o aspecto sacerdotal. Admiro sempre a profundidade desta carta que, na realidade ,é uma homilia na qual o mistério de Cristo é apresentado em todas suas dimensões, desde a dimensão mais alta de Cristo, Filho de Deus, esplendor da glória de Deus, selo de sua substância, até o Cristo nosso irmão, que assumiu toda nossa miséria e se humilhou até o nível dos condenados à morte, precisamente para introduzir aí todo seu amor e abrir uma via que chega até Deus.
Por outro lado, a Carta aos Hebreus manifesta um conhecimento verdadeiramente extraordinário do Antigo Testamento e o sentido do cumprimento do mesmo com as três dimensões – de correspondência, de ruptura em alguns aspectos e, naturalmente, de superação –, cumprimento completo.
A Providência fez com que eu pudesse consagrar verdadeiramente toda a minha vida ao aprofundamento na Escritura para proveito de tantos estudantes do mundo inteiro. Portanto, agradeço ao Senhor por ter me dado este privilégio.
– Quais foram suas premissas para o estudo da Bíblia?
– Cardeal Vanhoye: Foram claramente premissas de fé. A Bíblia é um texto que expressa a fé. Para acolhê-la de modo sério e profundo, deve-se estar na corrente que a produziu. Portanto, aproximar-se do texto inspirado com uma atitude de fé é essencial. Por outro lado, existe também a convicção de que a Bíblia é ao mesmo tempo um livro histórico, não uma palavra simplesmente teórica; é uma revelação com fatos, com eventos; uma realidade existencial histórica que, portanto, deve ser acolhida sob este aspecto.
– Em todos os anos de estudo da Palavra de Deus, o que o estimulou mais a seguir sua pesquisa, apesar das dificuldades do ambiente exegético ou inclusive do próprio trabalho? Quais são suas motivações mais profundas?
– Cardeal Vanhoye: Certamente, a convicção de que a Sagrada Escritura é essencial para conhecer Cristo, para segui-lo, para pesquisar todas as dimensões do mistério de Cristo. Também a estreita relação entre pesquisa exegética e aprofundamento da fé e da vida espiritual. Isso fez com que eu não hesitasse em estudar, pesquisar e empregar todas as minhas forças e minhas capacidades neste estudo de importância fundamental para a vida da Igreja.
– Quais foram os frutos mais valiosos para sua vida sacerdotal?
– Cardeal Vanhoye: A Palavra de Deus nutriu minha vida espiritual de modo muito fecundo. Por exemplo, quando eu ainda era estudante do Instituto Bíblico Pontifício, fiz um trabalho sobre duas frases do Evangelho de João que expressam a relação entre a obra de Jesus e a obra do Pai. Jesus recebeu o dom das obras.
Em duas frases, Jesus fala das obras que o Pai lhe entregou. Vi a insistência: «Meu Pai trabalha sempre e eu também trabalho» (João 5, 17). Um tema muito importante para o aprofundamento da vida espiritual não só de modo especulativo, mas especialmente no próprio atuar. Do mesmo modo que o Pai entregava suas obras a Jesus, este nos dá as nossas.
Este é um ponto que me alimenta: devo fazer sempre com o Senhor a obra do Senhor.
– O que falta na Igreja hoje para que a Escritura entre cada vez mais na vida espiritual dos fiéis?
– Cardeal Vanhoye: Faltam duas coisas principais: por um lado, os meios, os instrumentos, os materiais que possam ajudar os fiéis a acolherem bem a Palavra de Deus; e, por outro, a meditação dos fiéis sobre os textos da Bíblia. As duas coisas já estão presentes, graças a Deus, na vida da Igreja, e se tornaram mais presentes graças ao Concílio Vaticano II. Contudo, sempre resta alguma coisa a ser melhorada: por um lado, educar os fiéis para que acolham bem a Palavra de Deus e para acolhê-la não só na mente, mas no coração e na vida. Isso é claro. Deve-se educar os fiéis nisso.
E, por outro lado, para que isso seja realmente efetivo, é indispensável que os fiéis meditem na Palavra de Deus e reflitam sobre ela. E assim sua vida se transformará, pouco a pouco, pela força da Palavra de Deus.
– Como Bento XVI afirmou repetidas vezes, a lectio divina pode ser um meio muito adequado para este fim.
– Cardeal Vanhoye: Certamente, a lectio divina é um método de aprofundamento muito sério na Escritura inspirada. Mas para que influa na vida dos fiéis, é necessário que o último passo seja precisamente a aplicação à vida. É possível uma lectio divina que se contente em ser só uma consideração atenta do texto e depois uma meditação. Mas deve completar-se com o compromisso do fiel a aplicar, a receber verdadeiramente em sua vida a Palavra de Deus, a fazê-la não só presente, mas operante.
Este método tem o grande mérito de dedicar a atenção primeiro ao texto bíblico considerado em si mesmo, em seu significado exato, concentrar o esforço de atenção nele antes de fazer especulações que poderiam não ter nenhuma relação com o texto. A lectio divina parte da ‘lectio’, da leitura atenta. O cardeal Martini insistia nisso quando convocava na catedral de Milão reuniões de lectio divina.
Depois, é preciso meditar, ver a relação com a situação atual dos crentes. E então, trata-se de assumir atitudes espirituais de contemplação, de união com Deus, etc. Mas, como disse, a lectio divina deve ser estendida a uma transformação de vida.
Fonte: www.zenit.org