09.05.2017 -
Nada menos que dois terços da superfície terrestre são cobertos de água, o que a torna a substância mais comum do planeta. Isso poderia nos levar a supor que a escassez dela está longe de ser um problema e que jamais haveria a necessidade de reciclá-la e reusá-la. Não é bem assim, no entanto. Do volume total, apenas uma parte ínfima pode ser bebida ou consumida para outros fins pelo ser humano e demais seres vivos, pois 97% dele compõe os oceanos salgados. Dos 3% restantes, cerca de 70% estão na forma de gelo nos polos, nas geleiras e topos de montanhas; um pouco menos de 30% são subterrâneas; e apenas 0,3% está ao alcance fácil em rios e lagos.
Pode parecer pouco – e é mesmo. Mas é mais do que suficiente para atender às necessidades de toda a população mundial. “O problema é que ela está mal distribuída no planeta, com regiões com abundância e outras com escassez”, diz o engenheiro civil e sanitarista Suetônio Mota, do Departamento de Engenharia Hidráulica e Ambiental da Universidade Federal do Ceará (UFC). “Além disso, deve ser considerada a poluição cada vez maior. Muitas vezes, tem-se água, mas de qualidade inadequada, exigindo um custo elevado para tratamento, o que pode inviabilizar o seu uso.
Por isso, o reúso é necessário, principalmente devido à escassez em muitas partes. Mesmo em regiões antes consideradas sem problemas, podem ocorrer períodos de crise hídrica, como aconteceu recentemente em São Paulo.” País de dimensões continentais, o Brasil é um exemplo bem acabado dessa disparidade na distribuição do chamado “precioso líquido”. Seu território abriga cerca de 12% da água doce da Terra. Não deveria ter, portanto, problemas para abastecer sua população. Mas não é isso que ocorre. A escassez ou até mesmo a falta dela é uma realidade para milhões de brasileiros.
Parte disso se deve ao fato de que 80% da água existente no país está na Amazônia, onde vive cerca de 5% da população. Os 20% restantes têm de abastecer 95% dos brasileiros. Outras causas da escassez incluem desde a ausência de planejamento e investimentos no fornecimento até a degradação e poluição de nascentes, rios e mananciais. Mas um motivo entre todos se sobressai: o desperdício. Segundo a Agência Nacional de Águas (ANA), as perdas no país chegam a 43% da água captada e tratada para abastecimento, por causa de vazamentos, evaporação ou ineficiência do sistema de distribuição, por exemplo.
Opção viável
Diante desse quadro, o reúso – inclusive o potável – está crescendo no mundo e se tornando uma alternativa cada vez mais viável. “Trata-se de uma forma de auxiliar na minimização do problema da escassez e falta d’água”, diz o engenheiro ambiental Marcos von Sperling, do Departamento de Engenharia Sanitária e Ambiental da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). “Ao se usar um esgoto tratado para produzir água, diminui-se o lançamento de cargas poluidoras nos rios e lagos. Além disso, reduz-se o volume captado na natureza.”
O reúso para fins não potáveis já é comum em vários países.
Normalmente as águas residuárias (aquelas usadas nas residências e que acabam no esgoto) são tratadas e reutilizadas para fins menos nobres do que o consumo humano. Elas podem ser empregadas, por exemplo, na irrigação de parques e jardins públicos, centros esportivos, campos de futebol e de golfe, gramados e plantas decorativas ao longo de avenidas e rodovias ou ainda como reserva contra incêndios ou em fontes e chafarizes e lavagens de trens e ônibus públicos. Na indústria, elas podem ser reusadas em torres de resfriamento e caldeiras.
A tendência atual é o chamado reúso potável, isto é, tratar os esgotos e as águas residuárias de modo a torná-las próprias para o consumo humano. No artigo “A inexorabilidade do reúso potável direto”, o engenheiro sanitário Ivanildo Hespanhol, do Departamento de Engenharia Hidráulica e Ambiental da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP), afirma que as soluções mais modernas em termos de gestão de recursos hídricos consistem em tratar e reusar os esgotos já disponíveis nas próprias áreas urbanas, para complementar o abastecimento público.
De acordo com ele, os fundamentos ambientais, de saúde pública e gerenciais, assim como os sistemas de tratamento avançados e as técnicas de certificação da qualidade do líquido atualmente disponíveis, permitem fazer uso de recursos hídricos locais, produzindo “água segura”. “A prática de reúso potável direto para abastecimento público já está estabelecida em diversos estados americanos, África do Sul, Austrália, Bélgica, Namíbia e Singapura, sem que tenham sido detectados problemas de saúde pública associados”, escreve Hespanhol, que também é fundador e diretor geral do Centro Internacional de Referência em Reúso de Água, da USP.
Namíbia e Califórnia
Quando se fala em reúso potável, o exemplo mais citado, por ser o pioneiro, é o adotado em Windhoek, capital da Namíbia, cidade de 250 mil habitantes. Uma estação de tratamento avançado de esgoto, implantada em 1968, repõe a água de reúso diretamente no sistema da potável. Ela é misturada com a superficial tratada em uma estação. Com capacidade de produzir 21 mil m3/dia, ela responde pelo fornecimento de cerca de 35% da água potável da cidade em períodos normais e até 50% em períodos de seca e escassez. Testes microbiológicos e toxicológicos realizados frequentemente sempre comprovam a segurança da água produzida em Windhoek.
O sistema adotado no Condado de Orange, na Califórnia (EUA), é outro exemplo modelar. “Lá o esgoto é tratado de forma avançada (membranas, osmose reversa, entre outros processos) e depois injetado no solo, juntando-se ao aquífero que abastece a população da área”, explica Mota. “Essa prática tem, também, a finalidade de recarregar o aquífero para evitar a intrusão de água salina. É um tipo de reaproveitamento planejado potável, o qual tem funcionado com sucesso.”
No Brasil, o mais comum ainda é o reúso não potável, sobretudo nas indústrias e em algumas atividades urbanas (irrigação de áreas verdes). Um exemplo é o Projeto Aquapolo, resultado de uma parceria entre a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) e a Odebrecht Ambiental. Desde 2012, esse sistema fornece 650 litros/segundo de esgoto tratado na Estação de Tratamento de Esgoto do ABC paulista para o polo petroquímico da região. Isso equivale ao abastecimento de uma cidade de 500 mil habitantes.
No Nordeste, região mais carente de recursos hídricos do Brasil, pouco tem sido feito, no entanto. “Com o agravamento da seca, tem-se falado no reúso, mas poucas são as medidas efetivamente propostas visando aproveitar os esgotos tratados”, lamenta Mota. “Uma exceção é o Ceará. Considerando o grave problema da seca no estado, nos últimos cinco anos, a Companhia de Água e Esgoto anunciou que, inicialmente, será tratado 1 m3/s do esgoto coletado em Fortaleza, para ser vendido às indústrias do Complexo Industrial e Portuário do Pecém”, conta. “O projeto terá um investimento de R$ 680 milhões de uma empresa francesa.”
De acordo com Mota, apesar desse exemplo e de alguns outros espalhados pelo país, há muito ainda a ser feito para que o reaproveitamento seja adotado no Nordeste e no Brasil. “Existe a necessidade de uma legislação nacional disciplinando o reúso de água. Além disso, é preciso que seja definida uma estrutura institucional que possibilite a adoção dessa prática de forma ambientalmente adequada”, avalia. “O embasamento teórico já existe, mas ainda falta o aproveitamento dos resultados das pesquisas realizadas em diversas universidades e outras instituições.”
Fonte: Revista Planeta noticias
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