30.03.2017 -
O médico Jaime Vierna, patólogo do hospital “Virgem dos Lírios” de Alcoy, e master em bioética pela Universidade Católica de Valencia, escreve uma carta aos transexuais, que enviou a Religión Confidencial, com o mais profundo respeito mas alertando de possíveis decepções
[religionconfidencial.com] | Tradução: Airton Vieira
“Em 1979 José Luis Garci dirigiu um filme quase esquecido que intitulou “Las verdes praderas”. Contava a história de um homem que, em sua aspiração por alcançar uma posição social que lhe prometia uma vida despreocupada e feliz, sacrificou quanto foi necessário. Alcançou, finalmente, o objeto de seu desejo, e descobriu então que a realidade não se correspondia com o que ele havia esperado: havia mordido uma isca, e ao final do longo caminho se encontrava só com a decepção e a dor pelas ocasiões de felicidade perdidas. O argumento ficava resumido no lamento do protagonista: -“Me enganaram, droga! Me enganaram!”.
O ensinamento deste filme é aplicável a infinidade de situações reais de nossa vida, mas me vem à cabeça estes dias com insistência quando considero a condição “transexual”, levantada recentemente como bandeira de conceitos sociais encontrados. Agora, quando se atenuam já os ecos do tumulto, quisera considerar com calma a situação dessas pessoas que não se encontram “em casa” com seu corpo masculino ou feminino, e buscam a maneira de mudar as coisas. Por respeito a eles e a sua dor quiçá vale a pena considerar as coisas com certa cautela, não seja que se encontre, ao final de um caminho profundamente traumático, repetindo o lamento do protagonista de “Las verdes praderas”.
Que oferecemos hoje a estas pessoas para melhorar sua situação? Em essência, hormônios e cirurgia. Dos quatro aspectos da diferenciação sexual –cromossômico, hormonal, genital e psíquico-, esses tratamentos perseguem adaptar dois deles ao último. Evidentemente, a dimensão cromossômica do sexo resulta, para nossas possibilidades, “incorrigível”, mas os hormônios proporcionam os caracteres sexuais secundários desejados, e a cirurgia substitui um peito proeminente por outro plano, e elimina os órgãos genitais vividos como “alheios” para substituí-los por outros, acordes com o sentimento da pessoa (já que, como sabemos, os homens têm pênis e as mulheres têm vulva).
Preparação da mudança de sexo
Só que resolver esta “fratura” da pessoa não é tarefa fácil, e nem sequer é certo que assim consigamos. A cirurgia de mudança de sexo não é um procedimento menor: exige uma preparação prévia, física e psíquica, fisicamente custosa e humanamente traumática, e, após expor-se a riscos de saúde nada desdenháveis, se alcança, no melhor dos casos, só a “aparência” dos genitais desejados. Que resultam, ademais, disfuncionais, e que condenaram esta pessoa à esterilidade: uma sexualidade ferida.
Os novos órgãos genitais não são o desejado pelo paciente, não resolve sua situação. E, frequentemente, após esse longo e complicado processo em busca da plenitude, se encontram onde não queriam. E, o que é pior: sem espaço para o arrependimento, sem bilhete de volta. Há alguns exemplos dramáticos nos que a própria pessoa (o interessado, a vítima) tem optado por eliminar-se fisicamente, mais incapaz que antes de reconciliar-se com seu novo estado.
Caminho sem retorno
Verdadeiramente, se enfrentamos este problema com os olhos abertos e sem preconceitos, com sincero desejo de ajudar, temos que reconhecer que o que se lhes oferece agora aos transexuais é una má solução. E a razão é que os órgãos sexuais não são a causa do problema. São só a manifestação exterior de uma realidade mais profunda, que se enraíza no núcleo do ser dessa pessoa, e à que não podemos aceder. Por isso não funciona: porque eliminar uma manifestação não elimina o manifestado nela. Por isso não conseguimos transformar um homem em uma mulher, só podemos transformá-lo em um homem afeminado e mutilado; e uma mulher não podemos convertê-la em um homem, mas em una mulher virilizada e mutilada. Em ambos casos, a impossibilidade de uma plenitude humana, a impossibilidade da felicidade.
Devemos perguntar-nos se é essa a única possibilidade, se não é possível aspirar a outra coisa, aspirar a mais. Devemos perguntar-nos se não poderíamos atuar, em primeiro lugar, sobre a dimensão psíquica, a única dimensão, ao fim e ao cabo, originariamente discordante. Da mesma maneira que atuamos em outros casos de dissociação psicossomática. Sei que em alguns lugares começaram por proibir essa possibilidade, mas creio que não pensaram bem, e que por isso merece uma consideração mais detida e sem prevenções.
Em primeiro lugar, porque não conduz a um caminho sem retorno como no caso da cirurgia, e deixa espaço para o arrependimento, algo profundamente humano, não o esqueçamos; em segundo lugar, porque não fecha nenhum outro caminho se os resultados não são satisfatórios -não exclui, portanto a mesma cirurgia, chegado o caso; e, em terceiro lugar, porque é o único aceitável para a longa tradição médica que nos diz que deve eleger-se a possibilidade menos lesiva, o mal menor. O clássico Primum, non nocere – “o primeiro, não danar”- de nosso clássicos: o que nossos bioéticos chamam agora princípio de não maleficência: não tornar pior as coisas”. Fonte: www.sensusfidei.com.br
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