08.02.2015 -
Quando os aviões não eram apenas máquinas de transportar passageiros, o gado humano que neles entrava recebia todas as atenções da equipe de bordo. A ponto de um incorrigível pessimista apontar tais gentilezas como recurso das companhias aéreas para os passageiros esquecerem os riscos de acidentes prováveis. Bastante curiosa, aliás, é a quase total ausência de conversa entre eles durante a viagem, mesmo sendo amigos e sentados um ao lado do outro. Estou à procura de quem me explique isso.
Tudo muda para pior, neste mundo doente de pessimofilia, e basta uma viagem aérea para perceber que o serviço de bordo vem piorando. Como os riscos diminuíram, as empresas aéreas reduzem as gentilezas e ganham um pouco mais.
Eu estava curioso em atualizar também minhas informações sobre as salas de espera de serviços médicos, mas minha boa saúde me tem mantido longe delas. Pude constatar recentemente que elas também mudaram.
(Lá vem ele lamentar que pioraram).
Pioraram sim, mas a piora que notei talvez não seja a mesma que você notou. Melhoraram o conforto, a limpeza, as instruções sucintas e maquinais das atendentes uniformizadas, a eficiência dos computadores do sistema, que agora pensam duas vezes antes de se declararem fora do ar. Nem vou lamentar que cada paciente seja apenas o segurado número tal, senha número tal, em lugar do Senhor ou Senhora Fulano de tal, pois o anonimato globalizado rebaixou todo mundo a isso.
Antes de contar o que apurei na minha incursão por salas de espera, lembro que elas funcionavam antigamente como pontos de encontro, onde pessoas conhecidas ou desconhecidas trocavam ideias, queixavam-se das mesmas dores ou problemas, ensinavam cataplasmas para alguma dor do filhinho, sugeriam remédios ótimos que tomaram, mesmo sendo outra a doença do outro. Pontos de expansão do calor humano, elaborados ao longo dos séculos, servindo também como correias de transmissão de informações. Em pontos desses, nas margens dos rios, lavadeiras trocavam informações sobre grandes bagatelas de interesse local, nas famosas conversas de lavadeira. Hoje elas são uma categoria extinta, cujo calor humano foi aniquilado pelo ruído monótono e impositivo da máquina de lavar.
O meu exame exigia que eu esperasse duas horas depois do preparo, e na sala de espera pude observar dezenas de pessoas que entraram, permaneceram, saíram.
• Primeira mudança – O paciente chega com um papel na mão e entrega-o a uma recepcionista. Ela o lê e ordena: Entre neste corredor, vire no primeiro à direita, entre na sala tal e aguarde ser chamado. Ao seguinte, manda sentar ali mesmo e aguardar; e assim por diante. Surgindo alguma dúvida, outra informação se faz ouvir com o tom metálico de secretária eletrônica, e ambos se reduzem novamente ao silêncio.
Resultado: Mutismo empresarial, erigido em culto à eficiência. Substitui o calor humano por um sorriso gélido tipo Stop. No trespassing.
• Segunda mudança – Claro está que as pessoas poderiam conversar, se lhes interessasse. Mas não se interessavam. Por quê? Porque o direito de falar qualquer tolice era exclusivo de uma televisão colocada bem alto num canto da parede; e com as cadeiras voltadas para lá, a fim de ninguém deixar de vê-la e ouvi-la.
Resultado: Mutismo loquaz de quem fala sem pensar, dirigido a quem não fala porque não o deixam livre para pensar.
• Terceira mudança – Meu absoluto e irredutível repúdio à televisão me levou a sentar-me ostensivamente de costas para o referido canto de parede. Fiquei assim de frente para todos, disponível para trocar ideias sobre bagatelas de interesse comum. Mas todos haviam inclinado a cabeça para trás, acintosamente indiferentes a este comunicativo escriba, e embevecidos com as tolices do energúmeno pendurado acima da minha cabeça. Não aprendi a conversar com pescoços, por isso limitei-me a observar as caras, tão vazias quanto aquele cofrinho esférico, cuja única utilidade é servir de tampa para o pescoço que o sustenta.
Resultado: Mutismo voluntário de quem não pensa e nada tem a dizer.
• Quarta mudança – Ninguém conversava, ninguém comentava o que via ou sabia, ninguém reclamava. E na falta de contato humano, a única menina ali presente também não conversava, mas divertia-se com outras imagens aliciantes num instrumento moderninho chamado tablete.
Resultado: Mutismo informático, de quem olha tudo e não sabe nada.
• Quinta mudança – Mutismo globalizado, imposto, modelando autômatos com déficit irremediável de massa cinzenta pensante.
Ôps! A senha 528 vai ser examinada. Com licença.
Fonte: http://www.abim.inf.br
============================
Nota de www.rainhamaria.com.br
Lembrando o artigo publicado em 18.03.2011 -
O Prof. José Antônio Oliveira de Resende da Universidade Federal em São João d’El-Rey (MG) faz um depoimento interessante. Ele descreve alguns hábitos familiares de outrora, ainda perfumados pelo que restava de civilização cristã, e hoje desaparecidos, submersos que foram pela enxurrada do paganismo moderno.
Fala-nos das visitas que as famílias se faziam, e que constituíam costume ainda na década de 1950. Vinham impregnadas daquele prazer inocente da família católica, como resto ainda vivo da civilização cristã outrora pujante. Vamos ao texto.
* * *
Nossas casas vão se transformando em túmulos sem epitáfios e vivemos sós!
“Sou do tempo em que ainda se faziam visitas. Lembro-me de minha mãe mandando a gente caprichar no banho, porque a família toda iria visitar algum conhecido. Íamos todos juntos, família grande, todo mundo a pé. Geralmente, à noite.
E os donos da casa recebiam alegres a visita: ‘Vamos nos assentar, gente! Que surpresa agradável!’
A conversa rolava solta na sala. Meu pai conversando com o compadre, e minha mãe de papo com a comadre. Retratos na parede, duas imagens de santos numa cantoneira, flores na mesinha de centro, casa singela e acolhedora. A nossa também era assim.
Também eram assim as visitas, singelas e acolhedoras. Tão acolhedoras, que era também costume servir um bom café aos visitantes. Como um anjo benfazejo, alguém lá da cozinha, geralmente uma das filhas, dizia: Gente, vem aqui pra dentro, que o café está na mesa.
O café era apenas uma parte: pães, bolo, broas, queijo fresco, manteiga, biscoitos, leite… tudo sobre a mesa.
Pra que televisão? Pra que rua? Pra que droga? A vida estava ali, no riso, no café, na conversa, no abraço, na esperança…Era a vida respingando eternidade nos momentos que acabam….era a vida transbordando simplicidade, alegria e amizade…
Quando saíamos, os donos da casa ficavam à porta até que virássemos a esquina. Ainda nos acenávamos. E voltávamos para casa, caminhada muitas vezes longa, sem carro, mas com o coração aquecido pela ternura e pela acolhida. Era assim também lá em casa. Recebíamos as visitas com o coração em festa. A mesma alegria se repetia. Quando iam embora, também ficávamos, a família toda, à porta. Olhávamos, olhávamos… até que sumissem no horizonte da noite.
O tempo passou, e me formei em solidão. Para isso tive bons professores: televisão, vídeo, DVD, e-mail… Cada um na sua, e ninguém na de ninguém. Não se recebe mais em casa, e as casas vão se transformando em túmulos sem epitáfios, que escondem mortos anônimos e possibilidades enterradas. Cemitério urbano, onde perambulam zumbis e fantasmas mais assustados que assustadores.”
www.rainhamaria.com.br