02.07.2012 - A tal Comissão de Juristas encarregada de apresentar uma proposta de reforma do Código Penal terminou o seu trabalho e o entregou ao presidente do Senado, José Sarney. Se você quiser saber detalhes da tramitação, clique aqui. É possível também ler a íntegra. Há, sim, coisas positivas no novo texto, e não pretendo esgotar neste post tudo o que tem de ser dito a respeito. Mas há sugestões estúpidas, movidas por um tipo muito específico, mas não raro, de má consciência. Ela consiste no repúdio ao bom senso, rebaixado à mera condição de senso comum. Os tais juristas resolveram acolher a moral de exceção dos ditos “progressistas” supostamente “ilustrados”, que foi alçada a um imperativo ético. Essa doença tem nome: ódio ao povo, visto como um bando de selvagens que precisam ser civilizados pelas leis. O senso comum considera a vida humana uma expressão superior à de um cachorro? Segundo o norte ético estabelecido pelos juristas, um feto humano não vale o de um cão. O código que eles propõem também permitiria que nossas escolas fossem sequestradas pelo narcotráfico e inventa o terrorismo benigno.
Elejo alguns temas para comentar. E é bom que vocês comecem o debate na rede e façam a sua opinião chegar até os senhores senadores. Não é difícil encontrar o e-mail de contato. Basta entrar no site do Senado.
UM HOMEM VALE MENOS DO QUE UM CÃO
O aborto segue sendo crime, com possibilidade de prisão (Arts. 125, 126 e 127), mas o 128 ganhou, atenção, esta redação:
Art. 128. Não há crime de aborto:
I – se houver risco à vida ou à saúde da gestante;
II – se a gravidez resulta de violação da dignidade sexual, ou do emprego não
consentido de técnica de reprodução assistida;
III – se comprovada a anencefalia ou quando o feto padecer de graves e incuráveis anomalias que inviabilizem a vida extrauterina, em ambos os casos atestado por dois médicos; ou
IV – se por vontade da gestante, até a décima segunda semana da gestação, quando o médico ou psicólogo constatar que a mulher não apresenta condições psicológicas de arcar com a maternidade.
Parágrafo único. Nos casos dos incisos II e III e da segunda parte do inciso I deste artigo, o aborto deve ser precedido de consentimento da gestante, ou, quando menor, incapaz ou impossibilitada de consentir, de seu representante legal, do cônjuge ou de seu companheiro.
A vida é um direito protegido pela Constituição. O Código Penal não pode mudar um fundamento consagrado na Carta Magna. Mais: a aprovação de um código se faz por meio de projeto de lei, que requer maioria simples, em aprovação simbólica. A Constituição só pode ser alterada por emenda, com a concordância de três quintos da Câmara e do Senado, com duas votações em cada Casa.
O Código em vigência só permite a interrupção da gravidez em caso de estupro ou de a mãe correr risco de morrer. Por sua conta, o STF já foi além de suas sandálias e tornou legal, também, o aborto de fetos ditos anencéfalos — escrevo “ditos” porque, a rigor, anencefalia propriamente é uma impossibilidade. Se sem cérebro, o feto não se desenvolve. Sigamos. O que o texto faz, como fica patente, é recorrer a uma via oblíqua para legalizar o aborto volitivo. Basta que um médico OU psicólogo (atentem para o “ou”) ateste que a mulher não tem condições psicológicas de arcar com a maternidade.
É um acinte à inteligência e um atentado aos códigos de conduta de duas profissões. E os médicos e psicólogos sabem que estou certo. Pergunto:
a) desde quando médicos estão habilitados a assinar laudos psicológicos?
b) com base em qual fundamento teórico um psicólogo assinaria um laudo técnico atestando que a gestante não tem condições de arcar com a maternidade?
Pergunto aos juristas: médico e/ou psicológico poderiam, por exemplo, discordar da gestante? Digamos que ela manifestasse o desejo de abortar e se dissesse sem as tais condições… Um desses profissionais poderia objetar: “Ah, ela diz que não tem condições de ser mãe, mas a gente acha que sim…”?. Tratar-se-ia, obviamente, da legalização pura e simples do aborto, ao arrepio da Constituição, de maneira oblíqua, longe do debate com a sociedade.
Por que afirmei que a vida de um cachorro valeria bem mais no novo Código Penal? Porque ele resolveu proteger os animais — e não é que seu seja contra, não. Então vamos a eles.
UM CÃO VALE MUITO MAIS DO QUE UM HOMEM
Leiam o que dispõe o Artigo 391:
Praticar ato de abuso ou maus-tratos a animais domésticos, domesticados ou silvestres, nativos ou exóticos:
Pena – prisão, de um a quatro anos.
§ 1o Incorre nas mesmas penas quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos.
§ 2o A pena é aumentada de um sexto a um terço se ocorre lesão grave permanente ou mutilação do animal.
§ 3º A pena é aumentada de metade se ocorre morte do animal.
Os rodeios, obviamente, renderão cadeia. Nunca mais veremos — já não vemos — chimpanzés nos circos com roupinha de boneca e camisetas coloridas. Crueldade inaceitável! Alguém que submetesse, sei lá, uma cadela a um aborto poderia pegar quatro anos de cana. Já o feto humano iria para o lixo sem que a lei molestasse ninguém. Gosto de bicho. Infernizava minha mãe levando pra casa tudo quanto era animal abandonado. Mas os seres humanos me comovem um pouco mais.
UM CÓDIGO PENAL PARA NINAR VICIADOS, TRAFICANTES E EXPOR CRIANÇAS ÀS DROGAS
Os Artigos 212 a 224 tratam das drogas (páginas 340 a 344 do arquivo cujo link publiquei lá no primeiro parágrafo). De todas as insanidades existentes na proposta dos juristas, esse é, sem dúvida, o capítulo campeão. O financiamento ao tráfico, ora vejam!, entra na categoria dos “crimes hediondos”. Huuummm… Que comissão severa esta, não é mesmo? Então vamos ver o que diz o Artigo 212 (prestem atenção à “exclusão do crime”):
Art. 212. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:
Pena – prisão, de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa.
§ 1º Nas mesmas penas incorre quem:
I – importa, exporta, remete, produz, fabrica, adquire, vende, expõe à venda, oferece, fornece, tem em depósito, transporta, traz consigo ou guarda, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, matéria-prima, insumo ou produto químico destinado à preparação de drogas;
II – semeia, cultiva ou faz a colheita, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, de plantas que se constituam em matéria-prima para a preparação de drogas;
III – utiliza local ou bem de qualquer natureza de que tem a propriedade, posse, administração, guarda ou vigilância, ou consente que outrem dele se utilize, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, para o tráfico ilícito de drogas.
Exclusão do crime
§2º Não há crime se o agente:
I – adquire, guarda, tem em depósito, transporta ou traz consigo drogas para consumo pessoal;
II – semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de drogas para consumo pessoal.
§3º Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, à conduta, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, bem como às circunstâncias sociais e pessoais do agente.
§4º Salvo prova em contrário, presume-se a destinação da droga para uso pessoal quando a quantidade apreendida for suficiente para o consumo médio individual por cinco dias, conforme definido pela autoridade administrativa de saúde.
Quanto amor pelo individualismo! noto, de saída, que ninguém “planta” em casa cocaína, crack ou ecstasy. O texto acima busca contemplar a reivindicação dos maconheiros organizados, que são considerados os… drogados do bem! Sim, senhores! Os “juristas” cederam ao lobby da turma da Marcha da Maconha. Acho que isso expõe a seriedade do trabalho. A causa tem um lobista muito influente — e não é o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que tem uma opinião absolutamente equivocada a respeito. O deputado Paulo Teixeira, líder do PT na Câmara e vice-presidente da CPI do Cachoeira, defende que se criem cooperativas para o plantio de maconha. Segundo ele, isso serviria para combater o lucro do traficante. Parece que ele é contra o lucro, mas não contra a droga.
Procura e oferta
Os nossos juristas resolveram reinventar a lei de mercado: ao descriminar totalmente o consumo de droga — DE QUALQUER DROGA —, é evidente que se está dando um incentivo e tanto ao consumo e se está, por óbvio, aumentando a demanda. Quando esta cresce, a tendência é haver um aumento da oferta — até com uma eventual inflação específica, não é? Será o paraíso dos traficantes. Imaginem um monte de gente querendo consumir os produtos à luz do dia, em praça pública, sem precisar se esconder. Alguém tem de fornecer.
Mas o que é “consumo individual”. Os juristas definiram: uma quantidade que abasteça o consumidor por pelo menos… CINCO DIAS! Huuummm… Os aviões do narcotráfico passarão a portar, evidentemente, o suficiente para caber nessa justificativa. É espantoso! Notem que, a exemplo da legalização do aborto, também nesse caso, o que se faz é legalizar as drogas por vias oblíquas, sem que o povo se dê conta.
Mas os juristas são pessoas preocupadas com os infantes, tá? Eles querem coibir o uso perto de crianças. Vamos ver o que propõem no Artigo 221, que trata do “uso ostensivo de droga”:
Art. 221. Aquele que usar ostensivamente droga em locais públicos nas imediações de escolas ou outros locais de concentração de crianças ou adolescentes ou na presença destes será submetido às seguintes penas:
I – advertência sobre os efeitos das drogas;
II – prestação de serviços à comunidade;
III – medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.
§ 1º As penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 5 (cinco) meses.
§ 2º Em caso de reincidência, as penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 10 (dez) meses.
§ 3º A prestação de serviços à comunidade será cumprida em programas comunitários, entidades educacionais ou assistenciais, hospitais, estabelecimentos congêneres, públicos ou privados sem fins lucrativos, que se ocupem, preferencialmente, da prevenção do consumo ou da recuperação de usuários e dependentes de drogas.
§ 4º Para garantia do cumprimento das medidas educativas referidas no caput, a que injustificadamente se recuse o agente, poderá o juiz submetê-lo, sucessivamente a:
I – admoestação verbal;
II – multa.
§ 5º O juiz determinará ao Poder Público que coloque à disposição do infrator, gratuitamente, estabelecimento de saúde, preferencialmente ambulatorial, para tratamento especializado.
Voltemos um pouquinho à chamada “produção doméstica de drogas”. Como é que os preclaros vão saber se o pai que cultiva maconha em casa, para o seu consumo, fuma ou não a bagana na frente dos filhos, sobrinhos ou vizinhos? Obviamente, não vão saber. O que significa, no texto acima, “ostensivamente”? Qual é a distância do prédio que define “imediações das escolas”? Raio de 100 metros, de 200, de 500? O que impede um traficante de ter consigo uma quantidade de droga considerada de “uso pessoal” (para cinco dias, certo?) e dividi-la com alunos que estudam a um quilômetro do ponto de venda, distância que se percorre a pé sem grandes sacrifícios? De resto, um estudante-traficante poderá levar consigo a droga para vender na escola. Bastará não consumir dentro do prédio.
E no caso de o traficante, disfarçado de consumidor pessoal, ser flagrado, então, nas circunstâncias previstas no Artigo 221? Ora, meu caro pai, minha cara mãe, o sujeito que tentou aliciar o seu filho, ou que lhe forneceu droga, será severamente punido assim:
“I – advertência sobre os efeitos das drogas;
II – prestação de serviços à comunidade;
III – medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.”
É ou não é de fazer qualquer traficante tremer nas bases? Alerto os senhores que, com esse Código Penal, o trabalho de repressão da Polícia Militar se tornaria virtualmente impossível. Uma operação como a da retomada da Cracolândia estaria descartada por princípio. Os zumbis do crack, em razão da natureza da droga, quase nunca têm pedras consigo. Eles estão é em busca de novas. Pesquisem: um usuário chega a fumar até 20 pedras por dia. Um traficante que fosse encontrado com 100 poderia alegar que é seu estoque de… cinco dias! Fernandinho Beira-Mar e Marcola não pensariam em nada mais adequado a seus negócios.
O TERRORISMO REDENTOR
A nova proposta de Código Penal pune, finalmente, o terrorismo. “Que bom!”, dirá você. Calma, leitor apressado! Como diria o Apedeuta, é “menas verdade”. O tema é tratado nos Artigos 239 a 242 do texto (da página 349 à 351). Já escrevi aqui algumas vezes que o Brasil só não tem uma lei antiterror porque o MST, por exemplo, seria o primeiro a ser enquadrado. O que propõe o texto no Artigo 239?
Art. 239. Causar terror na população mediante as condutas descritas nos parágrafos deste artigo, quando:
I – tiverem por fim forçar autoridades públicas, nacionais ou estrangeiras, ou pessoas que ajam em nome delas, a fazer o que a lei não exige ou deixar de fazer o que a lei não proíbe, ou;
II – tiverem por fim obter recursos para a manutenção de organizações políticas ou grupos armados, civis ou militares, que atuem contra a ordem constitucional e o Estado Democrático ou;
III – forem motivadas por preconceito de raça, cor, etnia, religião, nacionalidade, sexo, identidade ou orientação sexual, ou por razões políticas, ideológicas, filosóficas ou religiosas.
§ 1º Sequestrar ou manter alguém em cárcere privado;
§ 2º Usar ou ameaçar usar, transportar, guardar, portar ou trazer consigo explosivos, gases tóxicos, venenos, conteúdos biológicos ou outros meios capazes de causar danos ou promover destruição em massa;
§ 3º Incendiar, depredar, saquear, explodir ou invadir qualquer bem público ou privado;
§ 4º Interferir, sabotar ou danificar sistemas de informática e bancos de dados;
§ 5º Sabotar o funcionamento ou apoderar-se, com grave ameaça ou violência a pessoas, do controle, total ou parcial, ainda que de modo temporário, de meios de comunicação ou de transporte, de portos, aeroportos, estações ferroviárias ou rodoviárias, hospitais, casas de saúde, escolas, estádios esportivos, instalações públicas ou locais onde funcionem serviços públicos essenciais, instalações de geração ou transmissão de energia e instalações militares.
Pena - prisão, de oito a quinze anos, além das sanções correspondentes à ameaça, violência, dano, lesão corporal ou morte, tentadas ou consumadas.
Forma qualificada
§6º Se a conduta é praticada pela utilização de arma de destruição em massa ou outro meio capaz de causar grandes danos:
Pena - prisão, de doze a vinte anos, além das penas correspondentes à ameaça, violência, dano, lesão corporal ou morte, tentadas ou consumadas.
Vocês já encontraram o MST ou os aloprados da USP no §3, certo? Aquele que define como terrorismo “incendiar, depredar, saquear, explodir ou invadir qualquer bem público ou privado”. O otimista dirá: “Finalmente, vai acabar a impunidade”. Nada disso! Se o terrorismo tiver uma “motivação social”, o que os juristas querem é garantir justamente a impunidade. Vejam o que eles acrescentaram ao artigo:
Exclusão de crime
§ 7º Não constitui crime de terrorismo a conduta individual ou coletiva de pessoas movidas por propósitos sociais ou reivindicatórios, desde que os objetivos e meios sejam compatíveis e adequados à sua finalidade.
Caminhando para a conclusão
Quando pessoas ou grupos estiverem “movidos por propósitos sociais ou reivindicatórios”, então podem invadir, queimar e depredar. “Ah, Reinaldo, não é bem assim; o texto fala em ‘meios compatíveis e adequados’… sei! Descaracteriza-se o crime para que fique por conta do subjetivismo do juiz…
Há mais coisas ruins na proposta, sim! Faço aqui o elenco de algumas. Noto que se trata de uma peça, como eles dizem, “progressista”, a despeito, certamente, da vontade da sociedade, que é majoritariamente contrária ao aborto, à legalização das drogas e à violência dos ditos “movimentos sociais”. Ocorre que os juristas parecem munidos de um espírito supostamente iluminista e civilizador, acima do pensamento da arraia-miúda.
Eles não querem fazer leis que estejam à altura das necessidades da população e adequadas a seus valores e ambições. Pretendem o contrário: que um dia esse povinho mixuruca esteja à altura dos valores e ambições das leis que eles propõem.
Comecem a marcação cerrada sobre os senadores! Depois será a vez dos deputados. Nesses artigos que destaquei, e há muitos outros a comentar, vai-se decidir, afinal, se um ser humano vale mais do que um jumento, se os traficantes serão enquadrados pela lei ou enquadrarão a lei e se o Brasil reconhece a existência do terrorismo benigno.
Com a palavra, o Senado Federal!
Por Reinaldo Azevedo - http://www.comshalom.org/blog/carmadelio