Liturgia da Palavra: À procura do tesouro escondido e da pérola preciosa


21.07.2011 - Por Dom Emanuele Bargellini, Prior do Mosteiro da Transfiguração

SÃO PAULO – Apresentamos o comentário à Liturgia da Palavra do 17º domingo do Tempo Comum – 1 Rs 3,5.7-12; Rm 8, 28 -30; Mt 13, 44 -52 –, redigido por Dom Emanuele Bargellini, Prior do Mosteiro da Transfiguração (Mogi das Cruzes - São Paulo). Doutor em liturgia pelo Pontificio Ateneo Santo Anselmo (Roma), Dom Emanuele, monge beneditino camaldolense, assina os comentários à liturgia dominical, às quintas-feiras, na edição em língua portuguesa da Agência ZENIT.

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DOMINGO XVII COMUM

À procura do tesouro escondido e da pérola preciosa

Leituras: 1 Rs 3,5.7-12; Rm 8, 28 -30; Mt 13, 44 -52

“Sabemos que tudo contribui para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados para a salvação, de acordo com o projeto de Deus” (Rm 8, 28 – Segunda leitura).

De onde vem ao apóstolo tamanha certeza confiante, diante das provações e contrariedades que têm acompanhado seu caminho e que acompanham o caminho de todo discípulo que escolhe seguir Jesus sem compromissos?

A resposta vem do próprio Jesus: “Eu te louvo, ó Pai Santo, Deus dos céus e da terra: os mistérios do teu reino aos pequeninos, Pai, revelas!” (Aclamação ao evangelho. Cf. Mt 11,25).

É propriamente a sabedoria que vem do Pai, a dar aos discípulos que se abrem a Deus e ao ensino de Jesus com simplicidade de coração e fé, conhecer o verdadeiro sentido da vida em correspondência ao projeto do amor de Deus. Os pequeninos são introduzidos no mistério do reino de Deus, que atua na história e na vida deles, e conseguem afinar-se, como um instrumento musical, ao seu ritmo e ao seu projeto. Eles “sabem”, com a intuição da fé, que o Pai tem cuidadosa cura até dos pássaros do céu e das flores do campo (cf. Mt 6, 28), e se entregam com confiança a ele, como a criança em braço de sua mãe (Sl 131).

O apóstolo ainda acrescenta: “Depois disso, que nos resta dizer? Se Deus está conosco, quem estará contra nós?... Quem nos separará do amor de Cristo? A tribulação, a angústia, a perseguição, a fome, a nudez, os perigos, a espada?... Mas em tudo isto somos mais que vencedores, graças àquele que nos amou” (Rm 8, 31.35.37). No pano de fundo destas palavras é fácil ler a experiência pessoal de Paulo, assim como a de inúmeros cristãos e cristãs que, ao longo da história do povo de Deus, chegaram a cumprir com grande criatividade obras maravilhosas de caridade, de cultura e de desenvolvimento social, muitas vezes sem recursos humanos relevantes, porém com a forca do amor. Às vezes até mesmo com o dom da própria vida, em testemunho inabalável da fé.

Uma testemunha excepcional do nosso tempo, Etty Hillesum, uma jovem judia morta no campo de concentração de Auchwitz durante a Segunda Guerra Mundial (1943), escreve no seu diário, encontrado depois da sua morte: “Eu acredito que da vida se possa levar sempre algo de positivo em qualquer circunstância; temos, porém, o direito de afirmá-lo, somente se pessoalmente não fugimos das circunstâncias piores” (Diário). E ainda: “Não são os acontecimentos a contar na vida... mas o que nos tornamos graças aos acontecimentos” (Idem).

E nós não pertencemos por acaso à mesma família de Deus, circundados do mesmo cuidado do Pai e acompanhados por tantas testemunhas que, confiando na fidelidade dele, largaram tudo para ganhar o tesouro escondido no campo e a pérola preciosa? Jesus nos convida a entrar no mesmo caminho e a nos empenharmos, guiados pela sabedoria do Espírito, na busca do tesouro da vida plena, deixando de lado tudo o que pode nos impedir de alcançar a meta e investindo todas as nossas energias na sua aquisição.

“O reino dos céus é como um tesouro escondido num campo. Um homem o encontra e o mantém escondido. Cheio de alegria, ele vai, vende todos os seus bens e compra aquele campo” (Mt 13, 44). Somente quem tem a sabedoria do Espírito consegue reconhecer no campo indistinto das situações da vida, o tesouro escondido do dom de Deus, da sua proposta e do seu chamado para uma vida diferente. Daí sua decisão de “vender tudo”, abandonar o que todo mundo acha importante para o sucesso da vida, para “comprar o campo”, seguir o chamado interior, alegre mesmo correndo o risco do investimento.

“Jesus dizia a todos: “Se alguém quer vir após mim, renuncie a si mesmo, tome sua cruz cada dia e siga-me. Pois aquele que quiser salvar sua vida a perderá, mas o que perder sua vida por causa de mim, a salvará” (Lc 9, 23-24).

Assim nasce e se desenvolve toda autêntica vocação do seguimento a Cristo e de toda escolha de configurar a ele a própria vida, partindo da íntima experiência do encontro com ele mesmo. Para aqueles que não têm esta luz/sabedoria do Espírito e não experimentaram o encontro com Cristo ao centro da própria vida, a busca apaixonada pelo tesouro escondido e a pérola mais preciosa do que as outras, parecem incompreensíveis. “O reino dos céus também é como um comprador de pérolas preciosas. Quando encontra uma pérola de grande valor, ele vai, vende todos os seus bens e compra aquela pérola.... Compreendestes tudo isso? Eles responderam: ‘Sim’.” (Mt 13, 45-46; 51 ).

Quem se coloca na escola de Jesus, o mestre que sabe valorizar os tesouros da tradição dos padres, conferindo-lhes uma nova atualidade, se torna ele mesmo mestre de sabedoria e de vida (cf Mt 13, 52). O discípulo de Jesus se torna mestre para os outros na medida em que permanece e vive como verdadeiro discípulo de Jesus, o único Mestre (cf Mt 23,8).

Às vezes, a procura do tesouro escondido e da pérola preciosa se torna motivo de escárnio e de contraste. Jesus nos alerta: “Não penseis que vim trazer paz, mas espada.” (cf Mt 10,34-35). Mais ainda nos desafia: “Não ajunteis tesouros na terra, onde a tração e o caruncho corroem e os ladrões arrombam e roubam, mas ajuntai para vós tesouros no céu.... pois onde está teu tesouro, ali está teu coração” (Mt 6,19-20).”

Este é o tesouro precioso que Salomão, consciente da sua falta de experiência (“eu não passo de um adolescente, que não sabe ainda como governar”), pede ao Senhor, e que o Senhor lhe concede com generosidade divina: “Dai ao teu servo um coração compreensivo, capaz de governar o teu povo e de discernir o bem e o mal... Já que pediste esses dons e não pediste para ti longos anos de vida, nem riquezas... mas sim, sabedoria... dou-te um coração sábio e inteligente” (1 Rs 3,4; 11-12).

A relação vital com a palavra do Senhor, para aqueles que se abrem a ela, se torna a verdadeira riqueza da vida e fonte da autêntica sabedoria e alegria: “A lei da vossa boca, para mim, vale mais do que milhões em ouro e prata... Maravilhosos são os vossos testemunhos, eis porque meu coração os observa! Vossa palavra, ao revelar-se ilumina, e ela dá sabedoria aos pequeninos” ( Salmo Responsorial 118).

Eis uma vida unificada e potenciada a partir da relação com o Senhor. A experiência de cada dia, pelo contrário, nos encontra muitas vezes em tensão entre a multiplicidade de sentimentos, desejos, medos, especialmente no que diz respeito a nós mesmos, aos outros, a Deus. Por outro lado, há sempre a exigência de nos encontrarmos, encontrarmos o nosso centro.

A rápida sucessão de impulsos, sentimentos, desejos, frustrações nos atravessam, até nos percebermos quase que esvaziados, roubados, desnorteados e exilados de nós mesmos.

Percebemos a necessidade de reencontrar a camada profunda das águas vivas, camada esta que irriga a vida e nos faz sentir em nossa casa. Precisamos aprender a lidar com as solicitações sem número que vêm do exterior (TV – Rádio – conversas, etc.), mas também com o fluxo das emoções e pensamentos, que todo dia nos impelem a ficar fora de nós mesmos. Isso se faz necessário para recuperarmos a capacidade de “habitar conosco”.

“Conhece a ti mesmo!”, dizia um antigo filósofo, profundo conhecedor da tendência ilusória humana de procurar fora de si mesmos as razões dos próprios conflitos, assim como a nascente da própria felicidade.

A partir desta experiência de fragmentação e desta inata exigência de unidade interior, é possível iniciar um autêntico processo de unificação do coração, centrado sobre o tesouro escondido no campo da vida. A inquietação que acompanha sua busca é graça. Impele-nos a discernir e a escolher entre os peixes bons e os peixes que não prestam, e que se encontram misturados na rede da vida (cf Mt 13, 47-48).

São Romualdo [1], homem iluminado pela sabedoria de Deus, tendo diante de si a parábola da rede cheia de todo tipo de peixe, indicava aos discípulos o caminho para voltar ao centro de si mesmos e ali encontrar a nascente profunda da vida: “Fica sentado na tua cela, como no paraíso. Expele da tua memória o mundo inteiro e joga-o atrás de ti. Fica vigilante e atento aos bons pensamentos, como um bom pescador aos peixes. Única via, para ti, encontra-se nos salmos. Não deixá-la mais” (Pequena regra de ouro, em Bruno Bonifácio, Vida dos cinco Irmãos, c.19)

Ler um livro, refletir sobre nós mesmos e sobre os eventos, além das emoções e das aparências imediatas, meditar a Palavra de Deus, é caminho de sabedoria, é caminho de oração, é caminho para aprender a “governar a vida”, segundo a sábia oração de Salomão. É caminho para reconhecer que de verdade, “tudo contribui para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados para a salvação de acordo com o projeto de Deus” (Rm 8, 28).

A partir do processo de unificação interior na sua relação com o Senhor, - que constitui o centro do evangelho e da espiritualidade cristã - se amplia e se aprofunda a visão da realidade, e se constroem sobre a rocha as escolhas fundamentais da vida. Constatamos o quanto seja difícil manter o leme do barco na direção deste horizonte unificante. E precisamos nos perguntar repetidamente: “Onde estou?”, “Para onde estou dirigindo-me?”.

Caminhar rumo uma vida sempre mais unificada no Senhor, e dele aprender a tudo abraçar com amor e liberdade, é cumprir com Cristo a passagem da páscoa, é a meta do projeto de Deus que fazer encontrar novamente a todas as coisas o próprio centro unificador em Cristo.

Um certo desnível entre a perspectiva e a meta marca com certeza o caminho do discípulo. É a nossa cruz e a nossa salvação! Antes de tornar-se razão para desanimar, se traduz em tomada de consciência da nossa condição de peregrinos rumo à plenitude da páscoa eterna, que coincide com a harmonia original: “Ainda peregrinos neste mundo, não só recebemos, todos os dias, as provas de vosso amor de pai, mas também possuímos, já agora, a garantia da vida. Possuindo as primícias do Espírito... esperamos gozar, um dia, a plenitude da páscoa eterna.” (Prefácio dos domingos, VI. Seu uso resulta bem apropriado na missa de hoje).

Desta consciência de povo peregrino, brota a invocação confiante da Igreja: “Ó Deus, sois o amparo dos que em vós esperam e, sem vosso auxílio, ninguém é forte, ninguém é santo. Redobrai de amor para conosco, para que, conduzidos por vós, usemos de tal modo os bens que passam, que possamos abraçar os que não passam” (Oração do Dia).

Notas:

1. São Romualdo (+ 1027) é o pai espiritual dos monges beneditinos camaldolenses. No ano 1012 ele fundou o Sacro Eremitério de Camáldoli, que se tornou a Casa mãe da Congregação Beneditina que deste lugar assumiu o nome de “Camaldolense”. No ano próximo os monges camaldolenses celebrarão o milênio da fundação de Camáldoli, onde a comunidade monástica vive sem interrupção até o presente. Para um contato com o ensino espiritual de Romualdo e da tradição camaldolense, se pode consultar: A. Barban – J.Wong (ed); Como água da fonte. A espiritualidade beneditina camaldolense entre memória e profecia; Ed. Loyola, São Paulo 2009

Fonte:  www.zenit.org


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