Demônio começou carreira como agente secreto de Deus, diz pesquisador


01.10.2008 - Qualquer cristão com um mínimo de formação religiosa é capaz de fazer um breve resumo da carreira do Diabo: originalmente um anjo poderoso, ele teria se rebelado contra Deus no princípio dos tempos, induzido Adão e Eva a cometer o chamado pecado original e, ainda hoje, estaria pronto a induzir a humanidade a fazer o mal, manipulando tudo e todos nos bastidores. O problema, afirma um livro que acaba de chegar ao Brasil, é que essa trama básica não estaria em lugar nenhum da Bíblia, mas teria sido montada por teólogos cristãos dos séculos 3 e 4, responsáveis por uma leitura um bocado criativa das Escrituras. Segundo essa visão, o Satanás bíblico não seria um rebelde contra Deus, mas uma espécie de "agente secreto" ou "chefe do FBI" divino, responsável por testar a lealdade dos seres humanos.

A tese polêmica está em "Satã - uma biografia" (Editora Globo), escrito por Henry Ansgar Kelly, professor emérito da Universidade da Califórnia em Los Angeles e autor de outros livros sobre a figura literária do Demônio. Kelly vai além da maioria dos outros estudiosos modernos da Bíblia, os quais, como ele, afirmam que as poucas aparições de Satanás no Antigo Testamento se referem a uma figura que é subordinada a Deus, e não inimiga do Criador. Para Kelly, no entanto, a situação não muda substancialmente nas menções ao Maligno no Novo Testamento.

"O Satã no Novo Testamento deve ser percebido como tendo uma posição equivalente a um Primeiro-Ministro, ou um Procurador-Geral da República, ou diretor do FBI, e não mais diabólico do que muitos dos mais zelosos representantes dessas posições aqui na Terra", escreve o pesquisador. A visão geral expressa nos Evangelhos e nos outros livros bíblicos do começo do cristianismo, segundo o autor, é que Satanás simplesmente toma gosto excessivo por suas funções de testador da humanidade, e por isso perde as boas graças de Deus, sendo expulso do Céu.

Antes de chegar a esse ponto, porém, Kelly tenta entender as primeiras aparições do personagem no Antigo Testamento, as quais são um bocado complicadas por problemas de nomenclatura. É que a palavra hebraica satan e seu equivalente aramaico satanah (o aramaico, é bom lembrar, era a língua provavelmente usada por Jesus no dia-a-dia) podem simplesmente funcionar como um substantivo comum, que significa algo como "adversário".

"Adversário" de quem, a propósito? Um dos poucos exemplos em que "o satã" (e não Satã/Satanás, como nome próprio) aparece na Bíblia hebraica é o livro de Jó. Nesse livro bíblico, um humano de altas qualidades morais e comportamento correto, o Jó do título, perde sua família, seus bens e sua saúde por instigação "do satã", que sugere a Deus um teste para a fé de Jó.

"No livro de Jó, 'o satã' é simplesmente um membro do Conselho Divino, um dos servos de Deus cuja função é investigar os acontecimentos na Terra e agir como uma espécie de promotor, trazendo os malfeitores à justiça", explica Christine Hayes, professora de estudos clássicos judaicos da Universidade Yale (EUA). "Quando Javé se gaba de seu piedoso servo Jó, o anjo-promotor simplesmente pergunta, seguindo sua função, se a fé de Jó é sincera", diz ela. Em algumas traduções da Bíblia, em vez de ser designado como "Satã", esse personagem é simplesmente chamado de "o Adversário". Aparentemente, ele é visto pelo autor anônimo do livro de Jó como um dos "filhos de Deus" -- expressão que se refere aos anjos que formam a

No livro do profeta Zacarias, também no Antigo Testamento, a figura de Satã (que também pode ser traduzido como "o Acusador") reaparece, desta vez questionando diante de Deus a boa-fé o sumo sacerdote judeu Josué. Enquanto Satã funciona como promotor público, um outro anjo é o advogado de defesa, que consegue a absolvição do sumo sacerdote. As aparições satânicas na Bíblia hebraica se restringem a essas passagens -- a serpente que induz Eva e Adão a comerem o fruto proibido no livro do Gênesis nunca é explicitamente identificada com Satã.

Licença para tentar

A situação e a personalidade do Diabo (palavra de origem grega cuja etimologia é a mesma do hebraico satan) mudam no Novo Testamento? A interpretação tradicional é que sim, mas Kelly tenta demonstrar que esse dado não é tão seguro quanto parece.

Primeiro, os Evangelhos e outros livros da parte cristã da Bíblia mostrariam que Deus delegou a Satanás a missão de testar a lealdade e a fé dos seres humanos, permitindo que ele tentasse Jesus no deserto ou levasse os apóstolos a fraquejar em seu apoio ao Messias. Isso também explicaria o costume de chamar o Maligno de "Príncipe deste mundo" -- um poder delegado por Deus ao Tentador enquanto o plano divino não chegasse ao fim. Também não é traçada relação direta entre a serpente do Paraíso e Satanás pelos autores bíblicos cristãos, nem mesmo por São Paulo, que traça um elo entre o pecado de Adão e a salvação trazida por Jesus.

Em sua análise do livro do Apocalipse, Kelly afirma que a última parte dessa drama cósmico é a "demissão" de Satanás de seu papel de acusador na corte de justiça divina. No capítulo 12 do livro, lê-se: "Foi precipitado o acusador de nossos irmãos, que os acusava, dia e noite, diante de nosso Deus". Essa visão é apresentada como uma profecia para o futuro, de forma que a chamada queda de Satanás e dos anjos que o seguem não poderia ter acontecido antes da criação do mundo.

"Os fatos são incontornáveis: Satã permaneceu em sua posição como o Acusador Celestial dos humanos desde os tempos da visão de Jó e Zacarias. Ele tem continuado a exercer essa função desde o presente e continuará no futuro, adicionando cristãos à sua lista de acusados. Mas ele se excede em suas acusações, com o resultado previsto de que não haverá mais lugar para ele nos Céus", escreve Kelly.

Nasce Lúcifer

Se essa é a interpretação correta dos dados sobre Satanás na Bíblia, de onde veio a história sobre a rebelião do anjo Lúcifer? Muito provavelmente da leitura que mestres dos primeiros séculos do cristianismo, como Orígenes de Alexandria (que viveu entre os anos 185 e 254 d.C.), fizeram da Bíblia, afirma Kelly.

O nome Lúcifer, ou "Portador da Luz", é só uma adaptação para o latim de Helel ben Shahar, ou "o Brilhante, filho da Aurora", termo poético usado pelo profeta Isaías no Antigo Testamento para se referir ao rei da Babilônia. Orígenes e outros pensadores cristãos, no entanto, interpretaram a passagem como uma referência à rebelião e à queda de um anjo poderoso, que teria se revoltado contra Deus por orgulho e, como vingança, levado Adão e Eva a pecar.

Fonte: Ciência e fé - G1

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Lembrando....

Teólogo do Papa fala sobre a ação do demônio

Por sua ação contra o homem, "devemos tomar o demônio muito a sério", mas sem esquecer em nosso caminho a confiança no amor de Deus --um amor "mais forte que tudo"--, cuja misericórdia "vence todo obstáculo", explica o cardeal Georges-Joseph Marie Martin Cottier, O.P., teólogo da Casa Pontifícia.

Acontecimentos como o de 24 de julho de 2004, na catedral de Santiago do Chile, o padre Faustino Gazziero foi assassinado por um jovem que proferia gritos satânicos, isso quando o sacerdote acabara de celebrar a Eucaristia-- suscitam a questão da influência maligna na pessoa e na sociedade.

Nesta entrevista, o cardeal Cottier aborda a ação real do demônio no mundo, suas causas, conseqüências e o motivo de esperança para o homem.

Neste grande mistério do mal, quanto conta a ação do diabo e que parte tem ao contrário a responsabilidade do homem?
O diabo é o grande sedutor porque tenta levar o homem ao pecado apresentando o mal como o bem. Mas nossa falta responsabilidade conduz à queda porque a consciência tem capacidade de distinguir o que é bom e o que é mal.

Por que o diabo quer induzir o homem ao pecado?
O diabo quer arrastar consigo o homem porque ele mesmo é um anjo decaído. A queda do primeiro homem esteve precedida pela queda dos anjos.

É uma heresia afirmar que também o diabo forma parte do projeto de Deus?
Satanás foi criado por Deus como anjo bom porque Deus não cria o mal. Tudo o que sai da mão criadora de Deus é bom. Se o demônio se converteu em mal é por sua culpa. É ele que fazendo mal-uso de sua liberdade se fez mal.

Haverá alguma vez redenção para o demônio, como afirma algum teólogo?
Propomos uma premissa: o homem caiu no pecado porque o primeiro pecador, ou seja, o demônio, arrastou-o a seu abismo do mal. De que se trata sua substância? De rejeição de Deus e, sobretudo, da oposição ao Reino de Deus como projeto de providência sobre o mundo. Esta rejeição que nasce da liberdade de uma criatura como o diabo é uma rejeição total, irremediável e radical, como se diz também no catecismo da Igreja Católica.

Então nenhuma esperança de que ao final a misericórdia de Deus possa vencer o ódio do diabo?
O caráter perfeito da liberdade do anjo decaído faz que sua eleição seja definitiva. Isto não significa pôr um limite à misericórdia de Deus, que é infinita. O limite está constituído pelo uso que o diabo faz da liberdade. É ele que impede a Deus de cancelar seu pecado.

Por que o diabo, que é espírito inteligentíssimo, usa dessa maneira essa liberdade que é em qualquer caso sempre um dom de Deus?
Aqui estamos ante o mistério. O mistério do mal é antes de tudo o mistério do pecado. Somos golpeados justamente pelos males físicos, mas existe um mal muito mais radical e mais triste que é o mal do pecado. O diabo se estabeleceu em sua rejeição. Também o pecado do anjo é sempre mais grave que o do homem. O homem tem tantas debilidades em si que de alguma maneira sua responsabilidade pode ficar velada; o anjo, sendo espírito puríssimo, não tem desculpas quando elege o mal. O pecado do anjo é uma eleição tremenda.

Parece impossível que um anjo criado na luz de Deus tenha podido eleger o mal...
Quando falamos de um anjo decaído por causa do pecado enfrentamos um tema muito grave e, portanto, devemos tratá-lo com grande seriedade. Na tentação do homem temos quase um reflexo do que foi o próprio pecado do anjo. Eis aqui a sedução suprema: pôr-se no lugar de Deus. Inclusive Satanás não reconheceu sua condição de criatura.

Por que o demônio é chamado príncipe deste mundo?
É uma expressão do Evangelho de João. Significa que o mundo, quando esquece de Deus, é dominado pelo pecado. A ação do demônio está guiada pelo ódio para com Deus e pode fazer graves danos quando seguimos suas tentações. O mal principal do demônio é o mal espiritual, o do pecado. Esta ação toca tanto o indivíduo como a sociedade.

Deus não teria podido impedir tudo isto?
Sim, mas permitiu que tanto o demônio como o homem tivessem a liberdade de atuar e, às vezes, de pecar. É um mistério tremendo. São Paulo diz: "Tudo é para o bem dos que amam a Deus". Quando, portanto, estamos com Deus, inclusive o mal contribui a nosso bem.

Difícil de aceitar...
Pensemos nos mártires. No extraordinário bem espiritual que, à luz da fé, deriva-se de uma tragédia como um martírio. Santo Agostinho, comentando a Paulo, diz: "Deus não teria permitido o mal se não quisesse fazer deste mal um bem maior". Há bens que a humanidade não teria conhecido se não tivesse estado na presença do pecado e do mal. É difícil afirmar isto, mas é a verdade.

Como o diabo atua na realidade de todos os dias?
Podemos compreender isso por algumas expressões do Evangelho de João, ali onde se diz que o demônio é homicida desde o princípio. Ou seja, é destruidor e faz morrer, tanto em sentido próprio como espiritualmente. Por isso é chamado o grande tentador.

Referimo-nos ao diabo quando no "Pai Nosso" dizemos "não nos deixes cair em tentação"?
Sim, pedimos a Deus resistir à tentação. É errado pensar que toda tentação venha do demônio, mas as mais fortes e mais sutis, as mais espirituais, têm certamente sua contribuição. E são tanto tentações individuais como coletivas. O demônio atua sobre a história humana. Sua influência é negativa. A morte, o pecado, a mentira são sinais de sua presença no mundo.

Diz-se que nem todas as tentações vêm do demônio. De que outra coisa devemos nos guardar então?
A tradição cristã nos diz que as fontes de tentações são três. A mais terrível, certo, é a do demônio. Depois está o mundo, a sociedade. E finalmente está na "carne", isto é, nós mesmos. São João da Cruz diz que destas três tentações a mais perigosa é a última, ou seja, nós mesmos. Para cada um de nós o inimigo mais pérfido é si mesmo. Antes de atribuir as tentações ao demônio e ao mundo, pensemos em nós mesmos. Aqui encontramos também a importância da humildade e do discernimento. O Espírito Santo nos dá o dom do discernimento e nos preserva da soberba de confiar demasiado em nós mesmos.

Qual é a atitude mais correta que o cristão deveria observar frente ao mistério do maligno?
Não se esquecer que a paixão e a morte de Jesus triunfaram para sempre sobre o demônio. Isso é uma certeza, São Paulo diz. A fé é a vitória sobre o pai do pecado e da mentira. Isto quer dizer que o demônio, sendo uma criatura, não tem um poder infinito. Apesar de todos seus esforços o demônio nunca poderá impedir a edificação do Reino de Deus, que cresce pese a todas as perseguições. O cristão, graças à fidelidade na fé, vence o mal.

Em conclusão...

Devemos levar o demônio muito a sério, mas não devemos pensar que seja onipotente. Há gente que tem um medo irracional do demônio. A confiança cristã, que se alimenta de oração, humildade e penitência, deve ser, sobretudo, confiança no amor do Pai. E este amor é mais forte que tudo. Devemos ter conhecimento de que a misericórdia de Deus é tão grande como para vencer todo obstáculo.

Fonte: ACI


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